Algarve, muito sol e céu aberto. Adivinha-se que, depois da pandemia, virá o pandemónio.
Sobre o assunto seria bom recordar que em 1982 foi publicado um livro de ficção, intitulado O Cais das Merendas, de Lídia Jorge (desculpas pela inevitável citação…), que chamava a atenção para dois aspectos. Primeiro, conviria que, na osmose da cultura regional com a cultura do vasto mundo, se resguardasse, para nosso bem e para o bem dos outros, alguma coisa da nossa identidade cultural. A última frase desse livro é a seguinte – Já não se sabia como voava um pássaro. Segundo, conviria não nos concentrarmos só e apenas nas lides turísticas e gastronómicas. Uma das cenas imaginadas nesse livro é o envio para o Espaço dos sons da Terra. Enquanto outros povos enviariam os sons próprios das suas culturas diversas, música, engenharia, mecânica, nós enviaríamos os sons dos talheres, o roçagar das toalhas, o brinde dos copos. Importante? Sim, mas subsidiário, tangencial, demasiado básico para nos apresentarmos aos futuros habitantes do Espaço.
Nos dias que correm rever essa mitologia fantasiosa, por incrível que pareça, transforma-se numa chamada para a realidade. Uma difícil realidade que teremos de enfrentar se não quisermos que o Algarve se transforme num local áspero para viver e trabalhar. É preciso que muitos, urgentemente, se sentem à mesa, passem pelo número um do ponto da ordem de trabalhos que consiste no mea culpa responsável – coisa difícil de acontecer na região e no país – para a fase da tempestade das ideias que conduz, e depois, à síntese e à proposta concreta. Andam no ar ideias mestras dessa reconsideração.
Claro que a urgência de fazer face a uma indústria tão vulnerável como é o turismo, em profunda crise, não se compagina com fugazes reuniões de responsáveis jogando à defensiva. Esta é a altura em que se deve avançar para acções concretas, coordenadas e em conjunto, onde a urgência da eficácia seja imperativo número um. Mas não nos iludamos – encontrar um equilíbrio coerente para a região, a médio e longo prazo, exige um espaço de análise e consideração para a qual devem ser convocados não só os que agem no terreno, mas também os que pensam, e vêem ao longe os acontecimentos, através daquele instrumento que radiografa à distância no tempo, chamada mitologias. Elas dizem claramente que a componente coadjuvante do turismo não são as indústrias extractivas, gás, petróleo e o resto. São o que está à vista de todos – retomar o trabalho da terra, o trabalho do mar e o trabalho do saber e da criação.
Tem de se ter em vista não só evitar o pandemónio depois da pandemia, É preciso depois do inevitável pandemónio erguer a harmonia.
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Flagrante contaminação: Essa gente que andou e anda mascarada toda a vida, tem agora dúvidas em usar máscara?
Carlos Albino