Desde 3 de junho, a TVI tem transmitido e retransmitido uma reportagem sobre a Mãe Soberana, referindo que se trata do culto mariano mais importante a Sul de Portugal. A perspectiva está bem fundamentada. A Sul de Fátima, a Senhora da Piedade ou Mãe Soberana, convoca em seu redor, como nenhuma outra narrativa religiosa, abaixo de Lisboa, multidões de devotos, de crentes e não crentes, ou simples curiosos, que desejam juntar-se a uma manifestação de alegria em torno de uma Pietà chorosa que dança no meio da multidão como se o Filho morto nunca tivesse estado morto, mas sempre ressuscitado. E talvez tenha sido essa singularidade que a Reportagem da TVI, que em muitos aspectos retrata a magnificência do cenário, a relação directa com a atmosfera e a meteorologia, o calendário solar e o espaço sideral em torno do monte e da íngreme ladeira, que espelha majestosamente o esforço dos homens do andor, e o ímpeto da multidão, talvez tenha sido essa singularidade, dizíamos, que não tenha querido transmitir ao país, ao não evocar o lado que a distingue do culto mariano de Fátima, É porque Fátima resulta de aparições, ou visões místicas de crianças, e tem a data precisa de 1917. Mas o culto da Senhora da Piedade perde-se nos séculos, e mais ainda se perde como Mãe Soberana, epíteto que remonta, como se sabe, às deusas romanas, ao culto a Ceres ou, talvez melhor, a Diana a que os romanos chamavam Mater Soberana, nome que sobreviveu embora a imagem e a devoção cristã datem do século XVI, o século das cristianizações impositivas após o Concílio de Trento com a sua limpeza dos documentos ou provas.
Essa parte da herança pagã, da festa que está em torno da Mãe Soberana de Loulé, ficou escondida sob a narrativa dos milagres e das superstições. Muitos dos entrevistados locais são conhecidos pelas suas posições de natureza antropológica sobre o culto da Mãe Soberana, e isso não ficou representado. Nem se chegou a referir aquilo que muitos louletanos dizem – Que podem não acreditar em Deus mas acreditam na Mãe Soberana. É pena que, com tão bom material, os autores da reportagem não tivessem tido a coragem de superar a visão simplista de um culto complexo, reduzindo-o a uma história de crença folclórica. Mas a Mãe Soberana não se esgota numa reportagem. Outras virão, porque as gerações passam, mas a sua efígie há-de permanecer, como fonte de alegria.
Flagrante mal do Algarve: O pior de uma democracia acontece quando alguns contam como certa a amnésia dos outros.
Carlos Albino