Tesouros arqueológicos descobertos na baixa de Faro

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Não foi preciso escavar muito para encontrar vestígios arqueológicos e históricos que vão desde o século I ao XVI. Junto ao Largo da Madalena, em Faro, numa área onde vão surgir novos apartamentos, foram encontrados verdadeiros tesouros que acrescentam história ao nosso passado e à antiga cidade de Faro, chamada de Ossónoba. Um mosaico, as bases da antiga entrada e saída da cidade, um dado, centenas de moedas e outros objetos de outros tempos foram descobertos e serão agora estudados pelos especialistas, que vão contar-nos mais um pouco sobre o Algarve de antigamente

“Assim que foram realizadas as primeiras sondagens de diagnóstico, Ana Resende e a sua equipa perceberam que havia vestígios arqueológicos e ‘meteram as mãos à obra’. O promotor da obra, já sabendo da possibilidade de serem encontradas evidências arqueológicas, uma vez que o terreno encontra-se numa zona histórica, segundo a responsável pela escavação e pela empresa Olho de Hórus Arqueologia, “é obrigado a fazer, antes da parte construtiva, todo um trabalho prévio do ponto de vista arqueológico”.

A responsável de 43 anos conta ao JA que o que foi encontrado corresponde a “vários níveis de ocupação”, sendo que os primeiros e mais evidentes “são níveis modernos, ou seja, do século XV ou XVI, que seriam correspondentes a uma zona industrial”.

“Encontrámos vestígios de tanques, zonas com restos de pavimentos e lixeiras com muito peixe”, explica.

A escavação continuou numa área de cerca de 600 metros quadrados e logo abaixo do nível moderno “os vestígios mais evidentes são os romanos”, tendo sido encontrada alguma cerâmica e moedas datáveis desse período.

Algumas moedas foram encontradas na escavação

Dentro da mesma área foram ainda encontrados vestígios de muros e de outras construções dessa época e ainda “novidades significativas” como aquilo que seria a antiga entrada e saída da cidade romana, uma das vias principais daquele tempo.

“As cidades romanas orientavam-se de acordo com dois eixos principais: um eixo norte-sul, que é o cardos, e um eixo este-oeste, que é o decúmanos. Esta parte corresponderia ao decúmanos da cidade”, refere ao JA a responsável, apontando para aquilo que seriam as bases das colunas.

“Embora já não tenhamos as colunas, seria uma via larga, limitada de ambos os lados por elas. Portanto isso só se justificaria numa via de saída da cidade. Logo à partida temos aqui uma evidência interessantíssima que até à data não se descobriu”, acrescenta.

A equipa de arqueólogos, composta também por dois homens de nacionalidade indiana, encontrou ainda restos de uma habitação romana chamada de domus, “que nos mostra a evolução que toda a zona foi sofrendo ao longo do tempo.

Isto foi sendo ocupado sucessivamente, por aquilo que nós estamos a perceber, desde o século I até ao século V e eventualmente VI”.
Nesta zona e naquele nível foi ainda descoberta uma cerâmica romana fina, que é equivalente a uma porcelana chinesa, “que nos permite dar uma cronologia da primeira metade do século I, logo à partida”, segundo Ana Resende.

A evolução e as alterações que aquele local foi sofrendo com o passar do tempo foi entendido através das camadas e de, por exemplo, na zona central do muro “que foi alterada e foi colocada uma bacia posterior, já num período em que a casa eventualmente teria uma ocupação industrial”.

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Foram ainda encontrados vestígios de tanques de salga de dimensões pequenas do período romano, que eram utilizados para preparados piscícolas, “que também foram arrasados posteriormente e com construções por cima”, além de paredes pintadas.

“Há paredes pintadas noutras escavações, mas aqui apanhámos paredes com uma grande qualidade, uma delas se calhar do século V ou VI. Mas teremos níveis diferentes de paredes pintadas, ou seja, nós apanhámos níveis do século I e II, cuja riqueza de cores era completamente diferente”, conta ao JA.

O mosaico encontra-se no limite do terreno a norte

Mosaico do deus Oceano parte dois
A norte do terreno da obra foi feita uma descoberta que emocionou e fez caírem lágrimas no rosto de Ana Resende. Foi descoberta uma parte de um mosaico, do século IV, em bom estado, ainda localizado no mesmo sítio onde foi colocado naquela época.

Considerado como o ex-líbris de todo este projeto, segundo Ana Resende “seria parte ou de uma casa de habitação ou de uma zona industrial”.

“Nós temos aqui a evidência do mosaico do deus Oceano, que é nesta rua um pouco mais à frente. Portanto para nós foi uma descoberta excecional. Ele continuará para norte, por baixo da parede. Não sabemos quais as reais dimensões dele e o que é que ele poderá ter mais representado. Nós apanhámos uma parte lateral, inclusive um limite. Temos rosáceas a delimitar a parede lateral e ele pode ser muito mais rico. Podemos ter aqui um mosaico do Oceano parte dois”, salienta ao JA.

Outra descoberta interessante, dentro de uma habitação do século IV, foi “aquilo a que se chama um tesouro monetário do período romano, porque temos uma concentração considerável de moedas”.

“Temos por volta de 40 moedas e essa concentração só é comum em casos em que são escondidas debaixo dos pavimentos, porque estamos a falar já de épocas de convulsão social, de ataques de povos vindos provavelmente do norte de África. Foram encontradas num nível por baixo do chão”, explica ao JA.

A escavar desde outubro de 2022, foram encontrados naquele local entre dois a três mil vestígios “em números largos”, sendo 220 deles moedas.

“Tudo é estudado e inventariado por nós enquanto arqueólogos. É feito depois um inventário a computador para o relatório final e é entregue e depositado no município. Já temos pessoas interessadas em estudar e publicar, inclusive na parte do estuque”, adianta.

Ao todo foram encontradas mais de duas centenas de moedas, entre outros objetos

Arqueólogos ajudam, não atrapalham
Há muitos anos que a opinião pública defende que o trabalho dos arqueólogos atrasa as obras. No entanto as mentalidades começam a mudar.

“Nós sabemos que um trabalho de cariz empresarial estamos sempre a correr contra o relógio. É importante criar esta articulação com o cliente e a própria Direção Regional de Cultura e as Câmaras”, refere Ana Resende.

Por um lado “não é sempre simples”, uma vez que “às vezes era necessário que houvesse uma maior ligeireza da parte da Direção Regional da Cultura no sentido de dar resposta à necessidade do cliente, cujo tempo é dinheiro”.

“Às vezes não há funcionários suficientes e eu compreendo isso nesse sentido, mas precisávamos que a dinâmica fosse mais rápida. Com a Câmara muitas vezes é mais rápido do que com a Cultura”, considera.

Já relativamente aos promotores das obras, “muitas vezes não têm sensibilidade perante a situação”, que “tem de ser incutida aos poucos, em que vamos explicando que nós não estamos aqui para impedir a construção de nada. Estamos aqui para facilitar as construções, mas também estamos aqui porque são os únicos momentos que nos permitem recuperar o passado e reconstruir o puzzle da cidade”.

“O que nós queremos não é dificultar, é perceber que isto não é só útil, como estamos também a fazer uma valorização do espaço. O que nós encontramos vai fazer com que o edifício não seja mais um bloco de apartamentos comum. Do ponto de vista empresarial, podem dizer que encontraram uma coisa única na cidade. É uma mais valia”, explica.

Por parte dos investidores daquele empreendimento, a opinião foi “excelente”, mostrando-se interessados e considerando que “é realmente uma grande descoberta”.

“Mostraram-se muito recetivos e pediram-nos inclusive, se calhar em articulação com a Cultura e com a Câmara, a cedência de materiais que querem efetivamente colocar em exposição permanente no edifício, porque vão criar um pátio central. Faro fica a ganhar mais um espaço cultural e acho que é uma mais valia para todos”, conclui.

Daniel Teixeira, operador de equipamentos de movimentação de terras naquela obra, com 38 anos, disse ao JA que “ não é todos os dias que se presencia e se faz parte de um elenco destes. Acho que é importante nós preservarmos as coisas. Temos de ter uma sensibilidade”, apesar de considerar que “há coisas que atrapalham”.

Neste projeto trabalham Marcelo Jerónimo, Ana Resende e Duarte Santos e dois colaboradores indianos

Falta coordenação e investimento político regional
Marcelo Jerónimo, outro dos arqueólogos daquela obra, alertou o JA para a necessidade de “uma maior coordenação e investimento político a nível regional” acerca da arqueologia no distrito.

“Toda a questão da minimização de impactos patrimoniais em empreendimentos públicos e privados é algo que, se não estiver suficientemente enquadrado na região, pode conduzir à destruição pontual de bens arqueológicos, agravada com uma mentalidade retrógrada que encara os vestígios do património e toda a ação dos arqueólogos como contratempos, que é necessário evitar a todo o custo, durante o avanço dos empreendimentos”, refere.

O arqueólogo de 34 anos e natural de Monte Gordo acrescenta ainda que “é preciso desmitificar esta ideia de que os arqueólogos só servem para parar as obras. O certo é que os trabalhos arqueológicos em muitos empreendimentos, apesar da dificuldade em se impor, têm conseguido a salvaguarda de um grande número de bens arqueológicos e os projetos são concluídos com a satisfação dos proprietários”.

Para Marcelo Jerónimo, no Algarve, a ação de muitos arqueólogos “já permitiu identificar, reconhecer e salvaguardar um espólio significativo em muitas dezenas de sítios arqueológicos”, apesar do “enfraquecimento da arqueologia portuguesa ao longo de boa parte do século XX e a pressão urbanística que começou a sentir-se a partir dos anos sessenta” que “destruíram muitos dos sítios identificados”.

“Hoje o património arqueológico é um claro registo elementar das atividades humanas do passado. A sua proteção e correta gestão são essenciais para equipas interdisciplinares estudarem e interpretarem-nas, assim como todo o resto da sociedade preservar e divulgar às gerações atuais e futuras o seu benefício”, conclui.

Jovens interessados na arqueologia
Há quem pense que a área da arqueologia só gera desemprego e não é atrativa, mas Duarte Santos, de 22 anos, é o exemplo que pretende contrariar essa tendência de pensamento mentalidade.

Natural do concelho de Castro Marim, é atualmente técnico superior em Património Cultural e Arqueologia, considerado pela equipa como o especialista em moedas e encarregue de estudar os metais encontrados.

Para o jovem algarvio, trabalhar nesta área “está mais relacionado com o gosto e com a vocação da pessoa, porque não é uma profissão fácil. Tem de se lidar com certas realidades que não é propriamente fácil de digerir.

Mas o gosto por descobrir as coisas e estar em contacto com o passado, é algo único. É uma experiência única”, confessa ao JA.

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