Um prefácio que foi afastado da obra

No final do ano de 2023, seria Dezembro, o fotógrafo Luis Torres e o organizador do seu livro de fotografia (QUANDO ÉRAMOS SÓ NÓS), a sair brevemente, vieram pessoalmente falar comigo para, encarecidamente como disseram, pedir-me um prefácio para tal livro. Logo adverti que, caso o livro tivesse apoio do pelouro cultural da Câmara Municipal de Olhão, um prefácio meu poderia ser mal recebido. Tenho a consciência que, desde há algum tempo, eu e os meus escritos somos persona non grata não na CMO, mas nessa área da vereação. Ademais adverti que no prefácio, se o escrevesse, eu diria o que penso – o que eventualmente pode não ser laudatório ou jeitoso para determinadas mudanças a que vou assistindo. Luis Torres fez o favor de me dizer que quando se falara no meu nome já essa parte da vereação torcera o nariz e desaconselhara a minha inclusão; mas ele, como autor, insistia; e garantia que com desagrado ou não, ou o livro saía com o meu prefácio; ou não saía. O mesmo me assegurou o seu acompanhante, curador da obra fotográfica. Sob tanta solicitação, fiz o prefácio.

Agora que o livro está na gráfica, recebo mensagem do referido curador, a comunicar-me que afinal se vira confrontado com a difícil opção entre: trabalho fotográfico mais alargado ou trabalho fotográfico mais ligeiro e sucinto, com textos. Por isso, suprimira os textos, entre os quais o prefácio que tão enfaticamente me pedira há dois meses; e que, à data do pedido e já com o livro maquetado, tinha o seu espaço claramente reservado.

Obviamente que me pareceu uma desculpa, e um pouco básica; e que me é fácil perceber que esta confrontação do curador só lhe surge depois de ter recebido o prefácio e de alguém o ter previamente lido. Percebe-se, assim, a origem da alegada confrontação.

Porém, o meu respeito pela obra de Luis Torres é imenso. E assim sendo, não quero deixar de dar-vos conhecimento do que seria o prefácio, publicando-o aqui de seguida. E saudando a obra do fotógrafo.

“O povo unido jamais será vencido!”

O grito corria uníssono, naquele Abril de 1974, pelas ruas, vielas e praças de Olhão. Não só em Olhão, claro; também por todo o país. Portugal respirava a haustos largos os novos ares da liberdade conquistada.

Manifestações ocorriam por todo o lado, espontâneas, vivas, coloridas e tantas vezes pícaras. Olhão via, entre a estupefacção e a alegria, desfilarem as operárias conserveiras, os soldadores, os homens do mar, os trabalhadores litográficos. Combativos, efusivos, os manifestantes erguiam pancartas à uma reivindicativas e proclamatórias, muitas de redacção orgulhosamente marcada por lapsos ou, melhor pensando, por neologismos. Os tempos despertados naquela límpida madrugada traziam novos dizeres, outra terminologia; e nem sempre os trabalhadores, as operárias, o pescador, capturavam o termo na sua exacta sonoridade; mas capturavam-lhe a essência, essa alma que há em cada palavra e que pode querer sempre dizer uma e outra e muitas coisas de uma só vez.

Abaixo o falsismo!, exclamava uma faixa de tecido pintada a vermelho vivo, que ali passava como a Senhora Nagonia no Só ,orgulhosa no seu erro de ortografia tão sincero quanto genuíno. Estamos contra a patronal! proclamava uma outra, descendo a avenida e levada ao alto por mão rude de quem sofrera decerto dias e anos de desdém e exploração por parte de patrões estupidamente pesporrentes. Lutava-se, reivindicava-se, pedia-se uma vida melhor; mas o combate vinha frequentemente envolto na graça, na espontânea graça que António Algarve tão bem resumiu na sua obra, hoje ao que parece esquecida, quando não ostensivamente ignorada, Gente de Olhão, o seu humor, a sua graça , que veio a lume com prefácio de Alberto Iria. Numa taberna em que os pescadores se reuniam a falar das suas coisas, nesses idos, um membro de um partido entra para dirigir palavras de comício aos presentes; e inicia a parlenda com um sonoro “ Camaradas!”. Logo um dos pescadores, ao balcão escorripichando o seu copito, se faz ouvir: “Camarada? Só se for da chata… que a bordo da traineira nunca te vi!”

Olhão, as pessoas de Olhão, desde sempre tiveram esse encanto, supremo encanto, de ser-lhes conatural a genuinidade e a franqueza que vinham sempre aliadas a um tipo de humor, tal como a sua especialíssima arquitectura e na feliz palavra escolhida por Francisco Fernandes Lopes, inerudito. Porque Olhão sempre foi essa gente. Essa sua gente inerudita porque de uma especial e mui própria erudição, a que lhes vinha da vida, das dificuldades, do convívio com o mar, amigo e adversário.

Olhão sempre foi essa comunidade solidária frente a inimigos, liberal e popular nas Guerras Civis que mais que oporem D. Miguel e D. Pedro opuseram dois conceitos de exercício do poder. Olhão sempre foi o amor de um médico qual o Dr. Estevão Afonso pelos seus conterrâneos doentes. Olhão sempre foi Zé da Mónica, Bartolomeu Constantino, João Carlos Mendonça. Sempre foi esses magotes de gente irrequieta que à passagem do Coronel José Lopes de Sousa o saudava enquanto se preparava para, gesto libertário inicial num país ocupado, se rebelar contra os invasores franceses em 1808, como a viu António Rosa Mendes em Olhão Fez-se a Si Próprio. Olhão foi, claro, os marinheiros que brindavam tanto à coragem como à loucura arrojando-se oceanos e mares desconhecidos afora num diminuto caíque, ora para ir ao Brasil, até à Corte que daqui desertara, comunicar-lhe que o povo olhanense expulsara os franceses; ora para ir a Odessa, no extremo oposto da geografia mediterrânica, para comprar trigo em tempos de escassez. Olhão sempre fora os operários que defenderam os seus direitos nas greves das primeiras décadas do século XX; sempre foi Manuel Zorra, emigrantes em França ou em Larache, os pescadores desse cais que José Afonso cantou, esse som de tamancos a ressoar no empedrado que ainda oiço por entre sonhos e que me sugeriu um poema que consta no meu Le Deuxième Livre de la Maison, editado em Marrocos em 2017, onde recordo essas mulheres que faziam as conservas e faziam o carácter laboriosos de uma vila que se apresentava inteira, pura, autêntica.

Olhão sempre foi essas pessoas, as suas gentes que tinham um falar próprio, igualmente inerudito mas tão próprio que António Henrique Cabrita estudou, debateu e apresentou no seu ensaio Curiosidades da Fala dos Pescadores Olhaneneses e que levou ao conhecimento de insignes filólogos como Paiva Boléo ou Vasco Botelho do Amaral. Olhão era as suas associações recreativas e grémios, estratificadas como a sociedade, as suas bandas, o Dr. Lopes na humildade do seu génio universal e enciclopédico; era as suas conversas de fim de tarde no Bate Estacas, as suas tabernas, os seus cafés, as rodas de amigos de volta de uma mesa, a marginal onde se estendiam e cosiam as redes e as amizades, as roupas penduradas nos alpendres e nas açoteias, os animais deitados ao lado dos donos nos bancos do jardim, os aparelhos nos quais se desempatavam anzóis à porta das casa, os velhos que no outono da vida se sentavam nas soleiras fumando o seu cigarro ou entretendo conversa com outros que se lhe juntavam, os becos e as travessas em que as vizinhas se conheciam e conviviam, as crianças para quem a rua era o mundo e onde tudo, ainda quando reinava a pobreza, tinha um cheiro poderoso a liberdade.

Era esse Olhão que recebido o 25 de Abril saía à rua, agora ainda mais livre, celebrando os dias, celebrando a liberdade.

Pois é essa gente, a verdadeira gente de Olhão, a que hoje parece ter sido afastada dos seus locais de origem, da sua ria, da sua marginal, das suas tascas, das suas soleiras, das suas ruas enfeitadas, é essa a gente que Luis Torres captou com tão extrema delicadeza e tão extremo rigor, num exercício de História que fica neste livro, pelas suas fotografias, para quem quiser hoje perceber o que foi e deixou de ser.

Luis Torres segue uma linha que distingue os grandes fotógrafos. Não se preocupa em ser laudatório, em pôr a sua arte vassala de qualquer poder, de qualquer transitório senhorito. O que ressalta das suas fotos é a vida ela mesma, a verdade, vista pela lente profundamente humana que a retrata. Como, por exemplo, Augusto Cabrita, o grande fotojornalista português, ou Eduardo Gageiro, Luis Torres foca-se em dar o espaço que a vida ou a sociedade negam aos humildes, aos mais pobres, aos que estão no lado desfavorecido da existência. Luis Torres resgata-os, com fina sensibilidade, para que escapem ao esquecimento, à desmemória forçada, ao cilindro globalizador que tudo arrasa e tudo normaliza, fazendo desaparecer identidades, modos, vivências, locais. Cada fotografia de Luis é um testemunho artisticamente precioso. E um testemunho necessário.

O fenómeno da gentrificação e da equalização, em que tudo é igual a tudo e o que for diferente esconde-se, omite-se, afasta-se ou proíbe-se, não é um fenómeno olhanense. Ocorre globalmente. É a vida, a estranha vida das sociedades modernas, dirigidas cada vez mais por indivíduos sem memória, sem gosto, nem conhecimento, mas que acham que o mundo nasceu com eles; e fazem assim tábua rasa do passado. É assim por todo o lado.

A liberdade é todos os dias substituída pela incutida necessidade de segurança; a convivência é reprimida para que se instale o isolamento; o exercício da intervenção cidadã é substituído pelo voto, fazendo caminho a ideia de que entre eleição e eleição os políticos têm não só as mãos livres para fazerem quanto lhes dê na gana, mas alvedrio para se suporem senhores de tudo e sabedores de tudo.

O mundo deixou de ter espaços de liberdade, de livre iniciativa. Para tudo, tudo, hoje se carece de uma licença, de uma autorização, de um papel assinado por um prócere qualquer, de uma palavrinha amiga de quem manda.

Como disse, não é um fenómeno olhanense; mas Olhão não escapou a ele. Às novas gerações os homens do mar ou as operárias conserveiras servem-se em estátua. Fica mais asseado, menos incómodo, mais inodoro. Ou não se servem de todo. Ao vivo rareiam, escasseiam. Ou inexistem já.

E assim o tecido social que caracterizava uma população, a malha arquitectónica singular, o que era tipicidade, genuína conduta, hábitos e modos se vão dissipando, desaparecendo na voragem das coisas que se relegam ou afastam, se proíbem ou condicionam.

A obra de Luis Torres é pois uma obre de reposição da verdade. Uma homenagem aos humildes, aos pobres, aos trabalhadores que orgulhosamente construíram uma terra e uma identidade que, parafraseando Rosa Mendes, se fez a si própria. Estas fotografias são urgentes e necessárias. Num mundo que vai tendo vergonha dos seus antepassados, que afasta os pais porque se envergonha deles, num mundo em que cada rincão pretende supinamente dar nas vistas sendo igual a todos os demais que supõe modernos, alguém que nos dá o passado, o nosso passado, com inteireza, com verdade e sem subterfúgios, honra a nossa memória e honra-se a si próprio. E pratica um acto da mais elevada justiça.

É indubitavelmente o caso deste livro. E é o caso da obra fotográfica, enquanto histórica e sociológica, de Luís Torres. Oxalá assim possa ser entendida.

Olhão, Janeiro de 2024

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