Uma tradição quase esquecida que quer renascer

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É uma recordação de infância para muitos e uma novidade para outros, que tem vindo a ser renascida para que não caia no esquecimento. O Presépio Algarvio é uma das tradições natalícias da nossa região, mais propriamente das zonas rurais, que nesta época é montado em algumas casas, mas que tem uma história muito antiga e uma grande ligação à agricultura

No Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela, localizado na antiga Escola Primária de Santa Rita, no concelho de Vila Real de Santo António, a presença do presépio algarvio já é um hábito anual com seis anos.


Desde 2016 que a responsável pelo espaço há 17 primaveras, Catarina Oliveira, de 50 anos, organiza a montagem deste presépio regional, convidando também a comunidade para participar na iniciativa.


A ideia surgiu através das “preocupações pelo património cultural e as antigas tradições”, além do interesse pela “questão das festividades cíclicas”, tendo já levado um projeto educativo até às instituições de ensino do concelho.


“A ideia é perceber como é por detrás desta dimensão mais comercial das festas que vão marcando o calendário festivo ao longo do ano. Acabamos por ver as festas a partir das montras das lojas, mas na verdade podemos ir ao encontro desta ligação mais profunda que existe entre as festas cíclicas e o ciclo astral, o ciclo vegetativo e o ciclo agrícola. Esta ligação é profundíssima e antiquíssima”, começa por explicar ao JA a também arqueóloga, natural de Lisboa.


Esta tradição algarvia divide-se em dois momentos: o primeiro, com o semear das searinhas, que são colocadas em latas de conserva, pires ou taças, deixando-as crescer durante algum tempo. O segundo momento é a montagem do presépio em si, com a colocação do menino Jesus, dos panos brancos, das rendas e de outros produtos regionais como as laranjas, alfarrobas, romãs, figos ou amêndoas.


Por tradição, “as searinhas costumam ser semeadas no dia 8 de dezembro, que tem também um significado especial, que é o dia de Nossa Senhora da Conceição, que tem a ver com a conceção e é propiciador da fertilidade e do crescimento”, refere.


“Tem também outro significado que é o facto de ser por essa altura que nos campos o agricultor lança a semente do cereal à terra. Isto está sincronizado com o ciclo agrícola, no sentido de propiciar o crescimento. Simbolicamente, ao semear estas searinhas, e ao fazê-las ser abençoadas pelo menino Jesus, a ideia é propiciar a fertilidade dos campos de que as comunidades dependem para se alimentar”, acrescenta.


Catarina Oliveira conta ainda ao JA que existem relatos de pessoas que colocavam as searinhas mais expostas ao sol para ficarem mais verdes, mas outras preferiam tê-las debaixo das suas camas para ficarem brancas.


“Nós fazemos com trigo mas também temos relatos de se usarem vários tipos de cereais, que até dão tipos de efeitos diferentes”, sugere.


Apesar de hoje em dia todos termos acesso a produtos oriundos da agricultura nas prateleiras de qualquer supermercado, “antigamente estas comunidades agrícolas estavam muitíssimo dependentes daquilo que era um bom ano agrícola”.

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“Havia a necessidade de propiciar, através de rituais e festas, esta fertilidade dos campos de que as comunidades dependiam para a sua própria sobrevivência. As festividades cíclicas, esta em concreto do Natal, tem exatamente a ver com isso, para que a divindade abençoe os frutos que nesta altura são relevantes”, salienta.


Segundo a arqueóloga, existe ainda referências de quem usasse as searinhas, depois de desmontar o presépio, nos campos agrícolas.


“Depois diziam que teriam propriedades curativas se fossem fervidas como chá, para curar várias maleitas, é como se fosse algo que já está abençoado”, acrescenta.


As latas de conserva onde são colocadas as sementes, são o elemento mais ‘moderno’ deste presépio, existindo referências da sua utilização a partir do momento em que foram fabricadas pela primeira vez, fazendo também “um pouco a ligação com o marítimo”.
Todos estes elementos são colocados em altares, que antigamente “tinham um pouco a ver com o mobiliário da casa” ou das cómodas, que eram desmontadas e as suas gavetas faziam a própria escada.


Segundo a arqueóloga, existe também a tradição de vestir o menino Jesus, uma vez que existiam “pessoas com jeito para a costura que faziam os seus próprios fatos”. O menino Jesus presente neste presépio foi feito à mão, por uma habitante de Santa Rita.
O presépio algarvio tem uma grande ligação ao ciclo astral, nomeadamente com a celebração do solstício de inverno, também ligado ao Natal.

“No fundo o Sol é que é a grande divindade do Natal”, conta Catarina Oliveira, que admite também montar o seu próprio presépio algarvio, em sua casa.
Este presépio, segundo os estudiosos, remonta à Idade Média, “mas este tipo de preocupações remontará muito antes do cristianismo”, refere Catarina.


“Há poucas pessoas que o fazem atualmente. Normalmente são pessoas que se lembram ainda como se fazia antigamente. Nós acreditamos que no fundo, ao fazermos o presépio e ao divulgarmos, estamos também a estimular para que as comunidades voltem a fazer”, acrescenta.


O presépio já resultou num projeto educativo, junto das escolas, com algumas turmas a montar o seu próprio presépio algarvio, que deixou os miúdos “muito curiosos, porque estão muito desligados. É a descoberta de um outro sentido para o Natal. A experiência que tivemos é que eles gostam muito”.


Já este ano, algumas turmas tiveram a oportunidade de plantar as searinhas, que fazem parte do presépio.
Este presépio é elaborado anualmente com a participação de cerca de meia dúzia de pessoas da comunidade de Santa Rita.


Aberto ao público de segunda a sexta-feira, entre as 09:00 e as 13:00 e das 14:00 às 17:00, com entrada gratuita, o feedback que o centro tem recebido “é bom”.
“Há pessoas que vêm de propósito. As pessoas da comunidade gostam muito de apreciar”, conta.


Este presépio algarvio está localizado em Santa Rita, mas também existem referências que possa ser ter existido, ou ainda existe, nos concelhos de São Brás de Alportel, Tavira, Loulé e Castro Marim.
Catarina Oliveira garante que, no próximo ano, o presépio algarvio estará de volta.

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