Vírus pôs agricultura a duas velocidades

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De um lado, a grande produção, a laranja, os produtos biológicos, tudo a vender a bom ritmo e com muito proveito para os agricultores. Do outro, os pequenos produtores e a horto-fruticultura tradicional fora da grande distribuição, com dificuldades devido ao fecho de hotéis e restaurantes e dos mercados. A agricultura algarvia está a navegar a duas velocidades desde que a pandemia se instalou. O JA faz o balanço

A pandemia do novo coronavírus pôs a agricultura algarvia a navegar a duas velocidades, apurou esta semana o Jornal do Algarve, em contacto com agentes do setor.


No topo da tabela estão os citrinos – sobretudo a laranja – que viram as vendas crescer nos últimos meses e os preços pagos ao agricultor mais do que duplicar, movimento que deverá continuar até ao fim da presente campanha, em meados de agosto.

Uma tendência acompanhada pela agricultura biológica generalista, que também cresceu brutalmente nos dias da pandemia e, em boa parte, por causa dela.


Mas nem tudo são rosas, também há espinhos: os pequenos agricultores, sobretudo do setor das horto frutícolas tradicionais (isto é, não biológicas) sofreram com a falta de escoamento do seu produto, a braços com quebras brutais devido ao fecho de mercearias, mercados municipais e setor Horeca (hotéis, restaurantes, bares e cafés) na fase mais crítica do confinamento.

Com o desconfinamento a avançar, esses mercados estão a regressar lentamente ao normal, mas há quem vaticine que, nos próximos meses, nada será como dantes.


“Esta crise não foi tanto sentida por tipo de produto mas pela dimensão do produtor. Os produtores de pequena dimensão ou de micro-dimensão sofreram mais. Abasteciam a mercearia do bairro, ou o restaurante lá ao pé. O restaurante fechou, o hotel ou pensão fechou, os mercados de rua fecharam. Mesmo os que produzem citrinos”, disse ao JA o diretor regional de Agricultura do Algarve, Pedro Monteiro. De acordo com o mesmo responsável, mesmo nos mercados municipais que se mantiveram abertos, o afluxo das pessoas diminuiu significativamente.

Pedro Monteiro

Agricultura foi resiliente


Em sentido contrário, ressalva que algumas mercearias que se mantiveram abertas durante o período de fecho da economia tiveram aumento de consumo: “Quando havia uma mercearia de bairro aberta, as pessoas optaram por ir mais a essas mercearias do que ao hipermercado, que tinha maior risco. Ora as mercearias já não abundam como dantes. Em muitos sítios fecharam”.

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Genericamente, contudo, o responsável máximo da Agricultura algarvia sustenta que o setor manifestou uma grande resiliência e os seus agentes “foram capazes de adaptar os seus modelos de negócio: O escoamento pelos canais online, a organização entre os produtores, por exemplo para fazer um cabaz. Resiliência nos mercados de exportação, turismo (substituído pela exportação, grandes superfícies, etc)”.


Os campeões do sucesso durante a pandemia foram os citrinos, sobretudo a laranja algarvia. E por causa da pandemia: “Neste período aumentou a exportação, muita dela para países do Norte e Centro da Europa. Há a noção de que a vitamina C, associada aos citrinos, reforça o sistema imunitário. A vitamina C é uma forma de prevenção da gripe e é um antioxidante. A laranja, por outro lado, é uma commodity, uma mercadoria de elevada escala, sujeita às flutuações da oferta. Quando nalguns mercados diminui a produção, é natural que esses operadores que abastecem as grandes cadeias venham a Portugal também comprar para suprir necessidades”, explica o diretor regional da Agricultura.


Com uma produção de apenas 5% dos 6,5 milhões de toneladas de laranja produzidas na Europa (o que resultou em cerca de 360 mil toneladas este ano), Portugal é o quarto produtor da Europa (o Algarve representa mais 90% da produção nacional), a seguir ao “gigante” Espanha, cujas 3,5 milhões de toneladas representam 55% da produção europeia, Itália (25%) e Grécia (15%).

Preço da laranja ao agricultor mais que duplicou


Além da “sede” de vitamina C provocada pela pandemia, foi a diminuição da produção nesses principais mercados – incluindo Portugal – que fez aumentar a procura da laranja algarvia. “A produção de laranja foi abaixo do normal e se o mercado reage favoravelmente, que foi o que aconteceu este ano, a procura aumenta. A produção de laranja foi mais baixa não só em Portugal mas também nos outros países”, destaca o presidente da associação de produtores AlgarOrange, José Oliveira, que contabiliza em 20 a 30% a quebra na produção nos mercados europeus.

José Oliveira


“O aumento generalizado da exportação foi seguido pela abertura de outros canais. Exportámos para a Alemanha quantidades que nunca tínhamos exportado. Houve uma produção menor nos outros países e havendo apetência no consumo isso ajudou.

Esta situação de boa procura aconteceu a nível europeu”, afirma o também dirigente da cooperativa Cacial, de Faro, que sublinha igualmente, como fatores positivos para o aumento das vendas, o aumento da procura de vitamina C e compostos antioxidantes devida à pandemia.


Esse crescimento da procura de laranja e escassez da oferta beneficiou os bolsos dos agricultores: o aumento do preço pago ao produtor chegou este ano a mais do dobro do que é normal, em média 60 cêntimos o quilo, mas com casos em que atingiu 65 cêntimos. Normalmente, noutros anos, o preço pago era de 25 a 30 cêntimos, embora no ano passado tivesse atingido os 40 cêntimos.


Produtor de citrinos na sua quinta de Monte Agúdo, Santo Estêvão, concelho de Tavira, Nuno Guiomar, 49 anos, corrobora que o aumento do preço da safra dos seus 32 hectares que lhe será pago agora em agosto – quando terminar a presente campanha – se deve em boa parte ao crescimento da procura no Norte da Europa.


“O preço subiu. Vou vender a safra em agosto, se ela está em alta vou vender em alta. Faço a campanha de agosto a agosto. As pessoas que me pagavam diziam sempre que isto está mau, mas agora não, e psicologicamente a gente até anda melhor”, afirma o produtor, referindo que este ano, ao contrário do que sucede em anos comuns, não há “jogo do gato e do rato” entre Portugal e Espanha: “Quando há muita produção, entre Portugal e Espanha, há buraco. Mas quando há menos produção, aumenta o preço do produto, vende-se tudo e todos saem a ganhar”, afirma, informando que, só agora, alguma laranja vinda de Marrocos começa a ensombrar o mercado europeu. Nada que o preocupe em demasia, acaba por confessar.

Nuno Guiomar

Área do abacate não tem margem para crescer


Já senhor de quase 2000 hectares no Algarve – bem longe dos 16 mil dos citrinos -, o abacate continua a fazer o seu caminho de sucesso, alicerçado em 95% de exportações fulgurantes. “Não tivemos o mínimo problema, a campanha terminou em maio e se houvesse mais fruta mais se tinha vendido”, sintetiza Rui Fernandes, assessor de várias empresas que operam com o abacate na região. Sobre o período de crise pandémica, social e económica, o especialista observa que o abacate “manteve uns preços excelentes e não teve quebras, embora sem a subida que teve a laranja”.


Em Portugal, o consumo aumenta de ano para ano, mas o que fica no mercado interno é residual. Nas exportações portou-se muito bem nos mercados tradicionais, que é o norte da Europa e o Reino Unido. Este ano não houve aquela subida de outros anos, mas manteve-se muito bem”, diagnostica.


A apetência do mercado europeu pelo fruto originário da América do Sul sustenta-se sobretudo nas condições de transporte: “Ele é apanhado aqui no Algarve e em dois, três dias está no mercado em ótimas condições, enquanto o que vem da América do Sul passa pelo menos 10, 15 dias em barco. E depois ainda apanha o camião. Tem que ser transportado muito em verde”.

Rui Fernandes


Ao contrário do que por vezes se diz, os atuais 1900 a 2000 hectares não deverão crescer muito nos próximos anos, uma vez que são escassos os terrenos ótimos para esse tipo de plantação: “A área do abacate dá atualmente 3 mil toneladas por ano, mas em pico de produção serão 20 mil, em média, por ano, no Algarve. E a tendência é que não haja muito crescimento, porque os terrenos que são ótimos para a plantação estão quase esgotados”, enuncia Rui Fernandes, sublinhando que mesmo a nível europeu o fruto só existe, além do Algarve, na Sicilia e Cadiz. Fatores que fazem do abacate um fruto caro, em comparação com a laranja.


Ao contrário de citrinos e abacate, no capítulo dos frutos vermelhos verificou-se uma retração de vendas, embora não substancial, de acordo com o diretor regional da Agricultura: “Nos frutos vermelhos houve menos procura. As pessoas não associam a framboesa à saúde. Têm que ir ao supermercado comprar. É um produto que eu não posso comprar por atacado, é perecível. O preço baixou, os comerciantes aproveitam-se para baixar os preços. Os custos do transporte aumentaram. Houve uma retração do volume de vendas e da rentabilidade”, resume Pedro Monteiro.


A própria pandemia não ajudou ao escoamento da framboesa, amora e morango: “A laranja tem a pele descascada, enquanto estes frutos não têm e coloca-se a questão da contaminação. As pessoas têm medo de tocar e comer e haver contacto com o vírus”, resume Pedro Monteiro.


No capítulo dos horto-frutícolas produzidos em regime tradicional, o agricultor Rui Miguel Mendonça, 49 anos, é bem a imagem da fragilidade do setor: produtor de vários modelos de tomate (rosa, coração, cherrys, tomate preto) pepino holandês, pepino normal (francês), que produz nos 4 hectares de estufas da sua propriedade, em conjunto com o seu irmão, bastou um pequeno nada para tudo mudar.


Tudo funcionou bem para o agricultor de Vale Judeu, concelho de Loulé, até ter havido uma desavença entre o armazenista com quem trabalhava e a Jerónimo Martins. Afinal era o Pingo Doce que reequilibrava uma balança desequilibrada agora pela falta do canal Horeca e a falta de consumo nos mercados locais e municipais. A partir daí nem tudo correu tão bem.

Rui Miguel Mendonça

50 toneladas de tomate para o lixo


“Ao princípio não havia diminuição das vendas, até se estava a vender bem. De há uns meses para cá, parou de se vender, parou. As pessoas não pararam de consumir, mas tínhamos vários hotéis e eles deixaram de trabalhar. Eu tinha clientes que me gastavam 2 a 3 mil quilos por semana e começaram a passar para 500, ou 300. Eles representavam 35 a 40% da minha produção total”, afirma Rui Miguel Mendonça.


Mesmo sem o escoamento tradicional, “o Pingo Doce ficava praticamente com o nosso produto todo, mas em abril deixou de trabalhar com esta empresa com que trabalhamos. Não sei o que se passou. Tive que arranjar outros clientes, mais pequenos. Mas em meio de maio tive que jogar umas 50 toneladas de tomate para o lixo.


Sem a grande distribuição, muitos pequenos agricultores como Rui estão a passar por sérias dificuldades. É o próprio Rui que explica porquê: “O pequenos comércio está morto, tenho estado em Loulé todos os dias e faz-se a restauração (uma parte deles já não vão abrir) e os que abrem que gastavam 3 caixas de tomate agora gasta meia. Os mercados pararam. Ainda não se sente a retoma dos hotéis e restaurante e isto vai durar muito mais tempo. Vou ter que mudar a produção nesta nova campanha. Vou fazer o coração invertido, o cacho e os pepinos, tudo para o Lidl”.


E continua o diagnóstico: “No mercado concelhio de Loulé vendia-se muita melancia, meloa, mas os mini-mercados estão a acabar. A parte do MARF [Mercado Abastecedor da Região de Faro] está muito mal. Não se consegue vender nada nos mercados municipais. Muitas mercearias fecharam. O que vejo é que caiu mais um pouco”.

O fulgor da agricultura biológica


Mas nem todos se podem queixar da pandemia. Fátima Torres, 50 anos, é proprietária da Quinta das Seis Marias, no Sargaçal, concelho de Lagos, espaço de seis hectares onde produz de tudo um pouco em regime de agricultura biológica. A sua produção e escoamento cresceram exponencialmente nos últimos meses.


“Temos tomate, pepino, feijão verde, espinafres, alface, abóbora, cenoura, temos 80 variedades. Para nós houve um crescimento. Talvez por as pessoas se quererem alimentar melhor e porque adotei a estratégia de abrir a loja na quinta. Os mercados acabaram em Lagos, e os nossos clientes habituais deixaram de poder ir ao mercado tradicional. E optei por abrir a loja na quinta.


Resultado: Fátima quintuplicou as vendas na quinta. “As vendas aqui na quinta cresceram muito, vendo umas cinco vezes mais do que antes. Nos primeiros 2 meses de confinamento as pessoas vieram aqui porque controlávamos a entrada das pessoas que vinham escolher os produtos. Hoje, só aqui na quinta fazemos uns 10 mil euros num mês, o que é muito bom. Cada pessoa faz uma média de 40 a 50 euros de compras e eu recebo 40 ou 50 por mês. Dantes recebia 10”.


Na quinta, Fátima não vende mais de 10% do que produz, mas garante que mesmo nos restantes 90% a procura cresceu imenso: “Esses 90% eu vendo através de canais de distribuição. Há muito mais procura também nesses canais. Foi um fenómeno de consciência das pessoas. Também compro a produtores biológicos e vendo. Aumentei a venda imenso”.

Fátima Torres


Esse aumento de clientes e vendas não se refletiu nos preços, como seria de supor. Fátima baixou os preços. “Baixei os preços porque comecei a produzir mais ainda e para incentivar as pessoas a virem à casa. É caro quando existem vários canais de distribuição, quando há intermediários e o mesmo produto passa por cinco mãos. É bom quando podemos vender diretamente ao consumidor, ele fica a ganhar com isso porque baixamos o preço. Nós fazemos desconto a quem vem à quinta. A pessoa desloca-se a 5 km da cidade de Lagos, gastam combustível. E isso é um incentivo, estou a ver se habituo as pessoas a deixarem de ser preguiçosas e ir ao supermercado onde está tudo direitinho nas prateleiras”.


Fatores que fazem Fátima desdizer o mito de que os produtos biológicos são mais caros: “É possível vender biológico a um preço aceitável. Nós vendemos cabazes aqui a 10 euros por cinco quilos de mercadoria. Só não come biológico quem não quer. Muitas destas quintas só produzem algumas variedades. Mas no meu caso, como eu aqui produzo uma imensidão de produtos, acaba por ser fácil às pessoas virem aqui e levarem o que querem”.


E o que elas mais querem é fruta: a pandemia fez as pessoas apaixonarem-se pelos benefícios da fruta, o que mais cresceu em vendas na Quinta das Seis Marias, garante Fátima.


E garante que o fenómeno não é exclusivo seu. Os seus colegas da agricultura biológica também tiveram mais vendas, sobretudo os que vendem localmente ou através de plataformas online.

João Prudêncio

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