Músicos em Portugal: Uma classe intermitente e desunida

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Viviane nasceu em França e veio para Portugal aos 13 anos de idade.
Fez parte da banda ENTRE ASPAS e em 2005 iniciou a sua carreira a solo. Com seis CDs lançados e dona de uma das vozes mais carismáticas e singulares da música contemporânea portuguesa, prepara um novo trabalho de originais que está a ser concluído durante a pandemia. O novo single está previsto para o fim de junho e o novo CD para o final do ano. Susana Travassos na sua secção “Uma algarvia à escuta do Mundo” conversou com Viviane sobre a sua carreira, sobre a sua experiência no mercado português e sobre a crise atual.

Susana Travassos – Viviane, tu que já contas com mais de 15 anos de carreira, como avalias esse tempo e o que foi mudando ao longo dos anos no mercado português?
Viviane –
Ui, foi mudando muita coisa… O fator mais determinante foi a internet. Eu comecei nos “Entre Aspas” com uma editora multinacional, a BMG. Ao assinarmos contrato a editora tratava de tudo. Quando iniciei a minha carreira a solo passei a fazer edição de autor. Nos primeiros anos ainda licenciei os meus trabalhos numa editora mas depois passou tudo a ser controlado por mim e pelo Tó (o meu companheiro de aventuras). Tudo mudou, agora com muito mais responsabilidade para o lado do artista, porque temos que fazer tudo, o que também é uma aprendizagem fantástica.


Nós criámos o nosso próprio estúdio e todas as despesas são suportadas por nós. Com o aparecimento da internet as ferramentas vieram colocar-se ao dispor dos artistas, mas em termos legislativos ainda há muitas lacunas. Quando a internet surgiu as pessoas começaram a descarregar músicas, nós não estávamos minimamente preparados para isto e não tínhamos leis que nos protegessem. A facilidade de gravar também fez com a oferta fosse muita e começou a “lei da selva”. Hoje em dia, já há alguns mecanismos de proteção que são realmente fundamentais, mas ainda há muita coisa por fazer.


S.T. – O que mudou para melhor e o que mudou para pior?
Viviane –
Para melhor o facto de podermos promover o nosso próprio trabalho, podemos promovê-lo para além fronteiras. É muito positivo poder mostrar a nossa música a nível internacional. Por ser global, a internet ajuda nisso. Quando estava nos “Entre Aspas” isso era mais difícil.


Para pior foi esse lado nefasto que eu já referi, o facto de os dividendos a nível digital serem insignificantes. Uma vez que já não vivemos da venda de discos, o que nos resta é basicamente a venda de espetáculos.


S.T. – Achas que essa maior responsabilidade representa maior liberdade?
Viviane –
Sim, a liberdade vem com a responsabilidade. Vêm de mãos dadas. Há muito mais liberdade nos “timings”, nos conteúdos. Eu senti-me mais realizada ao poder fazer as coisas à minha maneira. Porque quando pertencíamos a uma editora havia sempre algumas diretrizes que deveríamos seguir. Agora eu decido o que quero fazer e como quero fazer sem ser condicionada por ninguém.


S.T. – O que tens a dizer sobre a classe musical em Portugal?
Viviane –
Eu acho que a classe musical em Portugal não mudou absolutamente nada. Continuamos a ser muito desprotegidos, continuamos a falar a muitas vozes. É necessário falarmos mais em uníssono e no momento atual sentimos que deveria haver alguém que nos representasse com alguma força e que falasse em nome de todos nós, talvez um sindicato. O que eu sinto é que quando as coisas correm mal saímos todos cá para fora a queixar-nos, mas isso não nos torna mais fortes.


Precisaríamos também ser reconhecidos como profissionais da música. Para começar, não somos! Neste momento todos os profissionais do sector estão a sentir-se completamente impotentes, os apoios não chegam. Não sabemos o dia de amanhã, só sabemos que não haverá espetáculos tão cedo. Nós fomos os primeiros a ficar sem trabalho e provavelmente seremos dos últimos a voltar à nossa atividade. Por mim falo, os meus espetáculos foram todos adiados para o próximo ano. Ainda agora passaram 2 meses desde o início desta crise e já se ouve que há muitas pessoas a passarem por situações críticas e complicadas. Não temos grandes apoios por parte do ministério da Cultura, infelizmente. Há uma grande incógnita e angústia por parte das pessoas do sector da música.


S.T. – Porque é que achas que há essa dificuldade por parte da classe em criar essa voz em uníssono. Porque é que nestes 15 anos isso não aconteceu?
Viviane –
Porque os músicos querem é fazer música e não querem preocupar-se com questões jurídicas. E o facto de estarmos num país pequeno, cada um a lutar pela sua carreira… mas não sei porque é que ao fim de tantos anos não houve uma união. Penso que nos atores há mais união, por exemplo. Não sei exatamente dizer porquê, mas ainda não conseguimos, de facto, falar a uma só voz.


S.T. – Acreditas que o momento atual pode impulsionar isso?
Viviane –
Eu tenho esperança que sim e se não for agora vai ser muito complicado. Agora estamos todos em pé de igualdade e a precisar de nos organizarmos. Nas alturas mais difíceis é que estas situações têm que ser resolvidas. Eu sei que há pessoas a movimentar-se para que isto aconteça, mas é preciso que todos os músicos estejam unidos para conseguirmos mudar alguma coisa.

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Nós somos uma classe de “intermitentes”. O problema vem de antes, não surge agora e esta situação só vem agravar. Por exemplo em França os “intermitentes” tem um apoio por parte do governo, no caso do artista ficar sem trabalho. Em Portugal nunca nenhum esforço foi feito nesse sentido em termos governamentais. Por isso somos uma classe que está sempre na corda bamba.


S.T. – Como está a ser para ti esta situação de confinamento? Este tempo de incerteza face ao futuro?
Viviane –
Eu estou a tentar viver isto da melhor forma possível. Sou uma pessoa que gosta de viver o dia a dia. Tento não ter pensamentos muito maus, até porque viver no Algarve e ter a sorte de viver numa casa no campo é um privilégio e para a sanidade mental é muito importante. Às vezes penso nas pessoas que vivem em apartamentos, que vivem com crianças e como isso deve ser complicado.


Tenho estado a ultimar o meu próximo trabalho que deve sair este ano, CD de originais. O primeiro single deverá sair no final de junho e o CD no final do ano.


Também tivemos alguns concertos online: no dia 25 de Abril para a Câmara Municipal de Tavira e para o Teatro das Figuras. Estas foram propostas boas que respeitam os artistas.


Há muita gente a achar muita piada aos concertos online, gratuitos, mas pode ser um mau precedente, é um pouco complicado se começarmos a dar a única coisa que temos para vender.
(Rindo) Dediquei-me também a fazer uma “hortinha” porque acho que este ano vai fazer muita falta…


S.T. – Podes comentar um pouco as medidas emergenciais tomadas pelo ministério da Cultura?
Viviane –
As medidas são claramente insuficientes. O tempo vai passando e os apoios vão chegando muito lentamente. O apoio da segurança social para os trabalhadores independentes, ainda há pouco tempo não tinha sido pago. Falou-se no ministério da Cultura numa forma de apoio com um milhão para a TV Fest que seria transmitida na RTP, que foi muito contestada pelos artistas, resultando numa petição. Um milhão que era dado a 4 artistas que por sua vez iriam convidar amigos. Um Milhão para distribuir pelos amigos! Ora se isto é dinheiro do Estado e se, por isso, deveria ser para todos, era manifestamente muito injusto e uma forma muito estranha de apoiar. Essa indignação mobilizou realmente toda a comunidade e os artistas conseguiram o cancelamento, mas o que aconteceu a esse milhão depois disso e de que forma vai ser utilizado… não sei… Depois, quinze milhões foram entregues aos media e à comunicação social, mas o milhão da cultura não sei onde é que ele anda (risos) … O único apoio que resta é o através da segurança social, que no início foi dito que seria de 436 euros mas passou a ser de apenas 292 euros. É o apoio mais palpável, mas insuficiente. Estou muito preocupada… muito preocupada com os artistas e com todos os profissionais envolvidos: técnicos, produtores, etc…


O apoio da Gulbenkian deixou muita gente de fora uma vez que era apenas para música clássica e Jazz.
Houve também um apoio da DGARTES, eu concorri e foi recusado.


S.T. – Terias alguma sugestão a apresentar à ministra da Cultura?
Viviane –
Para já, acho que um milhão é muito limitado. Mas não sei… não sou ministra da Cultura, nunca fui, não aspiro ser nada do género na área da política, embora seja uma área que me interessa. Nós estamos a viver uma situação muito difícil, que ninguém estava à espera e penso que os nossos governantes até têm estado a conduzir esta situação da melhor forma, porque ninguém estava preparado em nenhum lugar no mundo. Mas relativamente à ministra acho que deveria ouvir mais todas as classes na cultura. E que não venha para a televisão falar com um discurso oco, que na prática resulta em nada.


Já agora gostaria de falar sobre uma coisa que não passa forçosamente pela cultura, mas que já se começa a falar, que é a existência de um rendimento básico para todos os cidadãos, um acesso aos bens essenciais. Eu acho que isso cada vez faz mais sentido e começa a ser discutido na União Europeia, os cidadãos estão cada vez mais desprotegidos. Isso iria dignificar mais as pessoas, eliminaria muitas tensões na nossa sociedade. Acho que os nossos governantes têm que olhar para esta possibilidade de uma forma muito séria.


S.T. -Consideras que as segregações subjacentes às leis do mercado fazem com que haja um desconhecimento por parte do ministério da Cultura sobre a verdadeira dimensão da classe musical?
Viviane –
Sim, há uma grande parte desconhecida que vive na sombra, e isso tem a ver com o facto de sermos um país pequeno, onde há 2 ou 3 pessoas que controlam todo o mercado e quem não faz parte desse grupo tem que fazer um esforço muito maior para ter alguma visibilidade. Há pouca regulação e é bastante injusto, mas a verdade é que isto acontece.


Mas a verdade é que somos muitos artistas em Portugal, há muitos músicos, muitos bons músicos e há projetos fantásticos que as pessoas não conhecem. Somos muitos mesmo, e uma ministra da Cultura que não tenha essa noção não sei até que ponto nos representa.


ST- Viviane, gostaria que te despedisses de nós recitando um poema.

De tudo ficaram três coisas…
A certeza de que estamos começando…
A certeza de que é preciso continuar…
A certeza de que podemos ser interrompidos
antes de terminar…
Façamos da interrupção um caminho novo…
Da queda, um passo de dança…
Do medo, uma escada…
Do sonho, uma ponte…
Da procura, um encontro!

Escolhi este poema do poeta brasileiro Fernando Sabino porque o ser humano é isso, tem uma capacidade enorme de se adaptar, regenerar, de procurar soluções. É importante não cairmos no desânimo e agarrarmo-nos às coisas boas. Porque também há coisas boas a acontecer!

Susana Travassos

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