Rostos do Algarve: Fernando Pessanha

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Aos 42 anos, o historiador vilarrealense é um descobridor do passado que ainda tem muito por revelar. A poucos dias de ter sido constituído membro correspondente da Academia de Marinha, o também colaborador do JA fala das suas investigações, das suas inspirações, da sua outra paixão - a música - e do futuro, que vem sempre de mãos dadas com o presente e com o passado

É com humor que Fernando Pessanha conta que foi com os filmes do Indiana Jones, nos anos 80, que descobriu o interesse pela história, mas a sua paixão pela música acabou por se meter no caminho. Depois de estudar na Escola Secundária de Vila Real de Santo António, na área das Humanidades, ingressou no Conservatório Regional do Algarve onde estudou piano entre 1998 e 2005.
“A partir do momento em que comecei a ter História da Música, com o professor Luís Conceição, voltou o gosto pela história”, conta ao JA.
Queria seguir estudos em Ciências Musicais, mas acabou por entrar em Património Cultural, na Universidade do Algarve, já que na altura trabalhava como livreiro e não podia prescindir do emprego para estudar.
Optou então por um curso “nada relacionado com música, mas que combinava história, história de arte e arqueologia”, explica.
Ao terminar a licenciatura, fez mestrado em História do Algarve e em 2014 ficou em primeiro lugar na candidatura ao doutoramento em História, pela Universidade de Huelva (Espanha).
Ao longo de todo o seu percurso académico foi trabalhador-estudante, sendo que além de músico, trabalhou como livreiro em várias editoras, até voltar à sua terra natal e começar a trabalhar no Arquivo Histórico Municipal de Vila Real de Santo António.

As suas primeiras investigações em VRSA

Quando começou a trabalhar na autarquia vilarrealense, em 2013, propôs-se investigar Santo António de Arenilha, com o objetivo de lançar uma obra que assinalasse os 500 anos da localidade antecessora de Vila Real de Santo António.
No entanto, “se o arquivo tem pouca documentação histórica sobre Vila Real de Santo António, muito menos tem sobre de Santo António de Arenilha. Tudo o que existe se encontra no Arquivo Nacional da Torre do Tombo ou noutras fontes que se encontram espalhadas por outros arquivos”. Ao mesmo tempo enfrenta outra dificuldade: uma Câmara Municipal numa penosa situação económica, que nunca mais publicou livros, fazendo com que “se desenvolvesse a necessidade estratégica de publicar as suas investigações noutras editoras e noutras revistas da especialidade”, explica.
“O facto de as investigações serem publicadas em revistas da especialidade, nomeadamente em revistas culturais, académicas ou científicas, fez com que os estudos sobre Vila Real de Santo António deixassem de resumir-se às publicações municipais, anteriormente circunscritas ao concelho, e passassem a ter visibilidade nos grandes centros de produção do conhecimento, como as universidades ou os centros de investigação. Foi ótimo porque hoje em dia a história de Santo António de Arenilha e Vila Real de Santo António já começa a considerar objetos de estudo até então pouco ou nada explorados, como a geo-estratéfia militar, a defesa da costa, as atividades do corso e da pirataria, o contrabando e a venda ilegal de escravos”, refere.
Fernando Pessanha acrescenta ainda que “foram precisamente os resultados obtidos com essas investigações que conduziram à recente colaboração com a Comissão Portuguesa de História Militar, do Ministério da Defesa Nacional, assim como à integração na Academia de Marinha”.

Investigar é como ver uma série ou um filme

O historiador tem no seu currículo aproximadamente 30 artigos científicos publicados

Para o historiador algarvio, fazer uma investigação “é o mesmo que ver uma série”. No entanto, “é inevitável que no decurso de uma determinada investigação sejam encontradas várias coisas interessantes que podem ser aproveitadas para investigações vindoras, mas tendo a consciência que se se começa a enverdar também por essa investigação paralela, acaba-se por desviar daquilo que no momento é o objeto de estudo e que deve ser o foco”, considera.
Fernando Pessanha diz ainda que “tudo isto faz um efeito de bola de neve” dando como exemplo uma investigação em que está neste momento a trabalhar, sobre relações transfronteiriças entre as duas margens do rio Guadiana no século XV, para ser publicada num livro da Universidade de Huelva.
“Já estou a identificar coisas que são interessantíssimas e que podem ser utilizadas e desenvolvidas em investigações futuras. Portanto, estar a trabalhar em investigação é estar autenticamente a ver uma série ou uma telenovela, onde nunca sabes onde é que aquilo que vai conduzir e simultaneamente começas a aperceber-te que existem outras telenovelas, outros filmes e séries que são do teu interesse e já sabes que mais tarde ou mais cedo vais vê-las, vais trabalhar nelas, porque já tens matéria suficiente para a engrenagem começar a funcionar”.

Aproveitar a história para o turismo

Fernando Pessanha confessa ao JA que tem muitas ideias em que a história local pode perfeitamente servir os interesses do turismo cultural, “só que as coisas levam o seu tempo a concretizar e os investigadores nada podem fazer se não existir vontade política na realização destas estratégias”, alerta.
“Como é que o concelho de Vila Real de Santo António tem um passado tão rico a nível da ação do corso e da pirataria e ainda não dinamizámos uma feira temática dedicada a algo tão atrativo e umbilicalmente relacionado com o nosso património histórico?”, questiona-se.
Por outro lado, o historiador alerta para a existência de outros temas “que estão praticamente inexplorados e que são extremamente atrativos para o público generalista”, como a Grande Batalha do Guadiana de 1801.
“Vila Real de Santo António tem grande potencial a nível da criação de novas imagens de marca, até mesmo imagens de marca próprias e únicas, que ainda não estão a ser exploradas e nem têm qualquer tipo de concorrência a nível nacional”, afirma ao recordar o tema das manobras militares que tiveram lugar durante as festividades da fundação da vila pombalina, entre 13 e 15 de Maio de 1774.
No entanto, “nenhum projeto pode ser desenvolvido sem um estudo prévio que sirva de base de sustentação científica. A partir de então sim, torna-se possível explorar argumentos temáticos atrativos do ponto de vista do turismo cultural e com repercussões a nível do desenvolvimento da economia local”, esclarece.

Público curioso

Fernando Pessanha refere ao JA que “as pessoas estão curiosas” com os resultados das investigações que tem vindo a desenvolver e que são frequentemente apresentadas “através de sessões presenciais, como é o caso do Arquivo entre Histórias que realizamos no Arquivo Histórico, ou as Jornadas de História do Baixo Guadiana. Tenta-se compensar através das conferências a informação que não circula através das edições municipais, de maneira a trazer as pessoas ao Arquivo Histórico e partilharmos com elas os resultados dos estudos sobre a nossa história local”, acrescenta.
Estas sessões têm sido um grande sucesso “porque ao longo dos anos temos conseguido fidelizar um público que tem vindo a crescer. Quem vier a qualquer sessão do Arquivo entre Histórias pode ter a certeza de que, felizmente, nem toda a gente encontrará lugar para se sentar”.

A história regional e local nas escolas

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Para Fernando Pessanha, “estes estudos têm ser divulgados nas escolas”, mas para isso “é necessário que os docentes tenham interesse e a humildade necessária para receberem formação, de modo a transmitirem aos alunos a nossa realidade histórica e patrimonial. É necessário que os nossos jovens desenvolvam um sentimento de pertença à terra, mas para isso acontecer é necessário ensinar as raízes da nossa identidade, o que somos e de onde vimos”.
É nesse sentido que o historiador sugere que “é necessário que os professores tenham formação contínua e é necessário que sejam feitos esforços no sentido de trazê-los ao Arquivo Histórico. Só assim conseguirão cumprir os propósitos pedagógicos e cívicos subjacentes ao ensino da nossa história local e regional”.
Ao mesmo tempo que a história do Algarve o fascina, também o deprime a constatação da realidade regional.
“O Algarve é uma região ímpar e com uma identidade patrimonial singular. Indigna-me verificar que são precisamente o período medievo-islâmico, que nos atribui um carácter excecional a nível nacional, e os séculos da Expansão e dos Descobrimentos, que desenvolveram o Algarve do ponto de vista demográfico, económico, artístico e urbanístico, que não as conjunturas históricas menos consideradas”, lamenta.
Fernando Pessanha diz não compreender “essa falta de visão estratégica, principalmente a nível dos poderes locais com condições económicas e com recursos humanos para fazê-lo e, principalmente, essa falta de visão estratégica a nível do próprio ensino superior. “E mais não digo”, remata.

As suas influências

Fernando Pessanha recorda que o gosto pela história vem também de uma das suas inspirações de criança, o mestre Manuel Cabanas, de quem era parente.
“Sentava-me no Museu Manuel Cabanas que existia no edifício da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, nos anos 80, e ficava a ouvir as histórias que ele me contava. Sendo ele um idoso e eu uma criança, e apesar da distância imposta pela diferença de idades, sentia grande admiração e fascínio ao ouvir aquele homem austero, culto e educado, que não se importava de ter como ouvinte um priminho imberbe”.
Durante o seu percurso académico, a sua grande influência foi António Rosa Mendes, que o apadrinhou desde o primeiro dia de aulas até à sua morte.
“Quando ele faleceu, era meu orientador de mestrado. Fiquei manifestamente órfão, porque para além de ser meu professor era meu amigo. O António Rosa Mendes era um homem muito singular, dotado de grande capacidade oratória e de uma ironia refinada”.
Com ele aprendeu “a rir nas aulas” e “o humor com que nós devemos encarar as situações, sem nunca perdermos de vista o sentido crítico e a capacidade de análise. O seu funeral foi no dia em que fiz 33 anos. Tocou-me bastante, ainda hoje fico emocionado quando penso nisso”, confessa ao JA.

A outra paixão

Houve uma época da sua vida em que estudava, trabalhava e ainda era músico, tal como nos dias de hoje.
“Sempre trabalhei, até como músico residente no circuito de bares de Albufeira, algo completamente marginal face aos gostos que cultivo na atualidade”, confessa.
A música entra na sua vida aos 8 anos, quando ingressa a escola Semifusa, que ficava localizada no centro comercial da Rua Teófilo Braga, em Vila Real de Santo António.
Aos 14 começa a ter as suas primeiras experiências a tocar em banda como teclista, nomeadamente nos géneros da música mais pesada e alternativa.
Algum tempo depois, as suas influências musicais começam a dirigir-se para o rock progressivo, para a música clássica e para o jazz.
Depois de pertencer à Big Band do Algarve, onde abundava o reportório de jazz e swing, começou a desenvolver o In Tento Trio, projecto de jazz e rock contemporâneo que já existe há mais de 10 anos.
“Não é a minha atividade profissional mas acaba por funcionar como uma carreira paralela. Tomei esta decisão a determinada altura da minha vida, de enveredar por algo que fosse mais constante e seguro, até para efeitos de subsistência. A música acaba por funcionar como um escape. Sempre que existe oportunidade de recuperar a carreira musical, faço-o e sempre por lazer e por amor, nunca por motivações económicas”, conta.
No entanto, a sua carreira musical encontra-se em stand by “até maio do próximo ano”, altura em que prevê entregar a sua tese de doutoramento.
Para o futuro, os seus pensamentos passam pela gravação do CD para piano solo “Raposinha”, que foi interpretado ao vivo “em contextos mais literários”, além da continuação do ciclo de concertos Tapa Esteiro, uma antologia poética/literária cuja banda sonora tem a sua autoria, juntamente com o In Tento Trio, onde também tocam o baixista Pedro Reis e o baterista Jorge Guedes.

O futuro

A fazer investigação no Arquivo Histórico de Vila Real de Santo António há nove anos, tem no seu currículo aproximadamente 30 artigos científicos publicados em Portugal, Espanha e Marrocos, para além quatro livros editados na área da História e outros romances, novelas e contos, na área da literatura.
Nos próximos meses pretende entregar a sua tese de doutoramento, que tem como título “Nuno Fernandes de Ataíde, o «nunca esta quedo» – A acção do capitão de Safim no apogeu da presença militar portuguesa em Marrocos”, trabalho que trata o labor militar, político e estratégico de “um algarvéu marafado” que era alcaide-mor de Alvor e que foi o responsável pela criação do protetorado português no sul de Marrocos, entre 1510 e 1516.
Demorando, em média, cerca de três meses a redigir um artigo, durante aproximadamente 12 horas por dia, Fernando Pessanha está neste momento a desenvolver uma investigação que será publicada pela Universidade de Huelva, no livro de homenagem ao falecido historiador espanhol António Gonzalez Diaz, além de ter agendada uma conferência nas Jornadas de História de Ayamonte acerca do marquês consorte de Ayamonte D. Francisco de Sotomayor, protetor da atividade do corsária no golfo luso-hispano-marroquino.
Considerando que “todos os concelhos do Algarve ainda têm muita história oculta”, o investigador conclui que é extremamente necessário “estudar o passado para compreender o presente e desenvolver estratégias para o futuro. Na realidade, todos nós somos história, pois é ela a matéria empírica que corporiza a nossa existência”.

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