Singularidades arquitetónicas da Fuzeta

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As casas populares do núcleo histórico da vila piscatória da Fuzeta (Olhão) escondem sistemas arquitetónicos que são
autênticos tesouros do urbanismo. Os pescadores daquela comunidade, umbilicalmente ligada ao mar, construíram
no século XIX aquele que é hoje, muito provavelmente, o maior conjunto da Europa de abóbadas de construção erudita.
O mais curioso é que os cerca de 750 tetos em abóbadas espalhados pela Fuzeta foram construídos por populares
e para populares, num trabalho de precisão e funcionalidade ímpar que surpreende até ao dias de hoje

A vila piscatória da Fuzeta, à semelhança da vizinha cidade de Olhão, foi fundada por pescadores que engendraram uma tipologia de habitação tradicional de configuração mediterrânica, distinta do resto do litoral algarvio.

Ainda que os edifícios do núcleo histórico tenham sido erguidos no século XIX e na primeira metade do século XX, a estrutura urbana da Fuzeta remonta ao século XVI, com os primeiros povoamentos sazonais dos pescadores da armação de atum em cabanas de colmo, localizadas na margem oeste da Ribeira do Tronco, tal como contextualiza Mafalda Pacheco, autora da dissertação de mestrado intitulada “A Evolução Urbana e Arquitetónica da Fuseta” (Instituto Superior técnico, 2009).

Desde o início que a localização e a organização das cabanas dos pescadores no território foram regidas “por regras de ortogonalidade, dando origem a um traçado regular com frentes direcionadas ao mar, que serviu de base para o crescimento urbano ocorrido nos séculos seguintes, sobretudo no século XVII, XVIII e XIX”, pode ler-se na investigação da arquiteta.

O primeiro pólo, na zona baixa da margem poente da Ribeira do Tronco, caracterizou-se por ruas paralelas com início na linha de margem, expressando a importância marítima do assentamento, cujo único acesso terrestre era composto pela estrada de ligação à povoação norte de Moncarapacho. “O prolongamento urbano deu-se na direção ascendente da colina mais próxima daquela zona baixa, onde foi edificado no século XVII um quartel para a defesa da povoação e da entrada na barra, contribuindo para a estabilidade necessária ao desenvolvimento urbano do assentamento”, detalha.

Casas populares com abóbadas únicas
Para quem não sabe, as casas da Fuzeta guardam alguns “segredos” que não estão à vista de todos. Pelas ruas da vila há coberturas de “telhado de tesouro” e açoteias sobre várias tipologias de abóbadas. Na Fuseta, as tipologias de abóbadas mais comuns são as abóbadas de berço, de berço abatido e de barrete de clérigo (as menos usadas).

Tratam-se de construções sem data, projecto ou arquitecto, sobre as quais não existe muita informação oficial. Segundo Mafalda Pacheco, a maior fonte de informação é o material fotográfico de perspetivas aéreas e viárias desde a década de 1940 à de 1970 que são “imprescindíveis” para a caracterização evolutiva urbana e arquitetónica da Fuseta.

Construção da igreja serviu de “escola” aos pescadores
Como explica a investigadora da Universidade Nova (FCSH), a arte de saber construir em abóbada chega à Península Ibérica na altura do Império Romano e também pelo conhecimento Bizantino, num cruzamento de saberes de duas culturas (por um lado abóbadas de tijolo e por outro lado abóbadas de pedra). O saber perdurou e teve, naturalmente, evoluções consoante as condições geográficas e a disponibilidade local dos materiais.

No século XVII, a construção do binómio Igreja (Nossa Senhora do Carmo) – Largo trouxe novas características urbanísticas ao território da Fuzeta, que até então seguia uma lógica empírica. “Quando vinham do mar, os pescadores ajudavam a amassar, a fazer a argamassa, a carregar a pedra e a areia para construir a Igreja de Nossa Senhora do Carmo”, recordam ao JA alguns populares que aproveitavam os últimos raios de sol de verão.

Do colmo à alvenaria com abóbadas
“É a obra da igreja, que demorou algum tempo e também tem uma abóbada única, com os seus mestres de obras e pedreiros, que vão ensinar os pescadores a construírem as suas casas, que estavam a ser construídas em simultâneo, na mesma dinâmica dos tetos em abóbada. A grande transição das cabanas de colmo para as casas de alvenaria é promovida pela construção da igreja”, destaca Mafalda Pacheco.

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“A construção das abóbadas é um trabalho de muita precisão e o conhecimento foi passando de geração em geração nos pedreiros através de manuais e de tabuadas, mesmo apesar do analfabetismo da altura. Há uma tabuada muito conhecida, do século XVII (ano de 1660), de João Nunes Tinoco, por exemplo. Aí vem o processo de cálculo para as espessuras das paredes, das abóbadas, para serem construções suportáveis”, minúcia.

De acordo com a investigação de Mariana Pacheco, na maioria das substituições, no século XIX, foi adotada “uma tipologia arquitetónica ‘standard’, implantada em lotes com larguras semelhantes, e caracterizada por uma distribuição interna unilateral desenvolvida em profundidade, com cobertura em açoteia sobre abóbada de berço abatido conjugada com a cobertura de telhado de tesouro ou de açoteia sobre abóbada de vela em compartimentos pontuais”, específica.

As casas da “noiva do mar” – assim era conhecida a vila da Fuzeta -, escondem coberturas feita de açoteia sobre abóbadas de berço abatido, à exceção do compartimento junto à fachada que é diferenciado pela cobertura de telhados de tesouro ou de açoteia sobre abóbada de vela e raramente de barrete de clérigo.

Sistema complexo que usa casca de berbigão
Com uma geometria própria, os sistemas arquitetónicos das abóbadas das casas populares da Fuseta apresentam uma construção “muito eficaz” que “não precisa de cofragem” (andaime redondo ou molde), uma vez que os tijolos se vão suportando mutuamente desde as paredes até ao cimo.

Para além de ser um sistema “muito inteligente”, há ainda uma particularidade que surpreende: o berbigão faz parte do processo de construção das abóbadas. “O berbigão coloca-se por cima, na zona dos cantos, para fazer o enchimento da abóbada para depois se fazerem as açoteias por cima. Era o material que havia antigamente. O berbigão tem ar no meio da casca, o que faz com que seja uma caixa de ar e serve de isolamento. Faz o enchimento, nivela o extradorso da abóbada, da parte de fora, além de isolar o interior. É uma ótima cobertura para se ter um bom ambiente interior”, explicou no programa da RTP1 “Visita Guiada”, em dezembro de 2019.

Casas na Fuzeta nos anos 50

Casas funcionais com técnicas sofisticadas
As casas construídas pelos (e para) pescadores tinham assim que atender a um sistema construtivo no qual a cobertura exterior (açoteia) fosse utilizada para estender redes de pesca, secar o peixe ou os frutos secos como a amêndoa e o figo.

Mas as singularidades da Fuzeta não terminam aqui. O núcleo histórico da antiga aldeia de pescadores apresenta uma regularidade urbanística traçada quase a régua e esquadro. “Esta singularidade do urbanismo remonta à primeira implantação das cabanas, que por si já era regular “, recorda a investigadora durante o programa da RTP2.

“É um fenómeno em que casas de pescadores são construídas com técnicas complexas e sofisticadas que normalmente não se aplicavam às casas populares, mas sim em palácios e a igrejas”, repara.

Populares e turistas voltaram a interessar-se
“Antigamente ninguém ligava a isto e nem sabíamos que aqui estavam porque os tetos estavam caiados e alguns até tinham decorações de estuque. Depois é que se descobriu quando as pessoas começaram a fazer obras e a vender casas e agora é que tem sido falado… As pessoas querem ver o que é e gostam de apreciar coisas diferente”, afirmava ao Visita Guiada Maria Mercês Martins Luís, proprietária da Casa da Tia Carolina, um exemplo vivo de arquitetura popular com seis abóbadas no seu interior.

Agora, para preservar aqueles “relíquias”, algumas pessoas envernizam os tijolos para evitar que as argamassas não se soltem como tempo.

Apesar de os tetos em abóbada “descascados” terem o seu encanto, a verdade é que não foram concebidos para ter esse efeito: “eram caídos com várias camadas para terem resistência e era muita forma de ajuda a manter a temperatura interior e a uniformizar as superfícies”, conta a investigadora.

Bairro histórico dos pescadores

Não se pode falar da Fuzeta sem falar do Bairro dos Pescadores, um conjunto arquitetónico residencial unifamiliar que inclui a Rua General Humberto Delgado, Rua de São Gonçalo de Lagos e Rua de Nossa Senhora do Carmo. Habitações para pescadores de média dimensão, composto por casas térreas com logradouro no tardoz, formando quarteirões. Inácio Peres Fernandes foi o arquiteto responsável pela obra, entre 1945 e 1949.


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