Viajámos no barco do lixo das ilhas-barreira: os Guerreiros da Paz

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É um trabalho de formiguinha, invisível, anónimo, quase todo na calada da noite, enquanto todos dormem, nas ilhas e fora delas. Acordarão, a maioria já com o sol lá no alto, para um mundo deixado limpo por aqueles autênticos guerreiros. Ziguezagueando nas águas pacíficas para fugir aos traiçoeiros bancos de areia, a família “da Paz” tem por função recolher o lixo e levá-lo para terra. Eles são os verdadeiros “Guerreiros da Paz” e os heróis desta reportagem, que um dia destes se fez na Ria, ali na orla fluvial entre Olhão e o cais de Faro.

São três gerações dentro daquele barco de 15 metros, que nos meses de aperto chega a levar quase uma centena de contentores verdes numa só viagem. Augusto da Paz, 73 anos, o filho Hélder, 49, e o neto Márcio, 23, começam o trabalho ainda o sol não despontou, às cinco da manhã, deambulam por entre os baixios, atracam de ilha em ilha, regulam a dança dos caixotes de lixo numa relação de amor-ódio com a grua, que os vai pondo e depondo de dentro para fora e de fora para dentro da embarcação.

Eles são só a ponta do icebergue de uma equipa de mais de duas dezenas de homens e mulheres, autênticas formiguinhas que têm como tarefa manter limpas as ilhas-barreira. Como tanto gosta de dizer Augusto, o comandante do barco que duas vezes por semana – agora no Inverno – leva a sujidade para longe das ilhas, patriarca da família “da Paz”, é um trabalho anónimo, de gente incógnita, que “deixam as ilhas bonitinhas para quando as pessoas acordam. Ninguém imagina o trabalho que isto dá”.

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E dá, o JORNAL DO ALGARVE é testemunha da razão que assiste ao comandante. A reportagem acompanhou o batelão da equipa de limpeza familiar ao longo da manhã da passada sexta-feira e pode testemunhar o trabalho abnegado dos três homens que viajam a bordo e dos 14 que se encontravam nas ilhas da Armona (quatro operacionais), Culatra (sete) e Farol (três).

Acompanhados da inseparável mascote Isa, de oito anos, a minúscula cadelinha de pelo negro que chora quando não vai ao mar, habituada à maresia desde os três meses de idade, os três homens (Augusto, Hélder seu filho e Márcio, neto de Augusto e sobrinho de Hélder) rumam primeiro à Armona, onde os esperam quatro homens e 10 contentores de mil litros propriedade da empresa municipal Ambiolhão.

Antes, os mesmos trabalhadores (parte de uma equipa de oito homens e mulheres que varrem e limpam a ilha do concelho de Olhão) tinham recolhido, com a ajuda de três pequenas carrinhas de caixa aberta, o lixo depositado pelos moradores, contentores esses que levaram para um depósito provisório. Antes da chegada do batelão de Augusto da Paz, noite ainda mais negra, já os quatro homens tinham transportado os contentores para o cais, onde ainda antes das 5:30 da manhã começaram a ser recolhidos pela grua da embarcação, operada pelas mãos do mestre Augusto.

Hélder e Márcio da Paz

Lixo de verão é cinco vezes mais que no Inverno
Às 6:10, uma hora depois de zarpar de Olhão, já o “Márcio da Paz” (o batelão leva o nome do mais novo dos “da Paz” a bordo) está de regresso ao cais de Olhão, onde os 10 contentores hão-de ficar à espera da posterior recolha a cargo do camião do lixo da Ambiolhão.

Próximo destino da embarcação: Culatra, já no concelho de Faro, a mais habitada das ilhas-barreira, com cerca de 750 moradores permanentes e quase o dobro nos meses de verão. Uma matemática que o lixo não acompanha: na Culatra, como em todas as restantes ilhas-barreira, o lixo recolhido num mês de outono ou inverno é quase sempre muito menos de metade do recolhido em agosto. Chega a multiplicar por 10 no verão! A título de exemplo, no mês de outubro deste ano a mesma Culatra produziu um total de 285 contentores (de 450 litros) de resíduos sólidos contra 836 em agosto; na reciclagem, foram 18 contentores de papelão (contra 29 dois meses antes), 11 de plástico (46) e 19 de vidro (42).

Outro dado, mais abrangente, atesta a diferença entre o lixo produzido no verão e no inverno: os quatro núcleos habitacionais demandados pela “Márcio da Paz” produziram em agosto deste ano um total de 2.278 contentores de lixo e 524 de reciclagem; os mesmos núcleos produziram em outubro passado um total de 489 contentores de lixo e 90 de reciclagem. Entre cinco e seis vezes menos!

O aumento sazonal brutal verificado no verão é explicado não só pelo crescimento do número de residentes como em boa parte pela enorme quantidade de veraneantes que procuram as ilhas para desfrutarem de algumas horas de praia, regressando a casa no mesmo dia. Eles vão, o lixo fica. E fica em tão grande quantidade que mestre Augusto e sua prole têm que trabalhar todos os dias nos meses de pico do verão algarvio.

Agora, no outono, a recolha cinge-se às segundas e sexta-feiras. Uma periodicidade que pode incluir também as quartas-feiras, se forem atendidos pela Ambiolhão e Fagar (concelho de Faro) os pedidos de mestre Augusto. “Eu tenho que comer todos os dias”, justifica, a braços com sete meses de dupla recolha semanal, ele que é pago “por viagem” e tem duas bocas para alimentar, além da sua. Os ordenados que paga são iguais no verão e no inverno.

Voltando à Culatra: sob o brilho dos primeiros raios de sol, sete homens e 47 contentores aguardavam a equipagem do “Márcio da Paz” no péssimo cais da ilha, pouco depois das 6:30 da manhã.

Recolhidos em camadas no porão aberto do batelão, a eles se juntarão pouco depois os 25 contentores que aguardavam no cais da contígua ilha do Farol. Juntos, os 72 recipientes quase tiram a visibilidade a mestre Augusto, à popa, sempre ao leme da embarcação que há 20 anos mandou construir, nos estaleiros da Nautiber, em Vila Real de Santo António.

Trabalhar noite e dia para deixar as ilhas “num brinquinho”
Habitualmente candidato único à “parcela de navegação” da limpeza das ilhas, nos concursos lançados pelas empresas Ambiolhão e Fagar, Augusto da Paz anda há 20 anos a concorrer anualmente àquele trabalho, o que confessa ser desgastante. “Os concursos deveriam ser por vários anos”, sustenta, cansado de tanta papelada.

A viagem entre o Farol e o cais comercial de Faro (hoje não é dia de ir aos Hangares, de onde o Polis expulsou boa parte dos residentes e quase ninguém habita por esta altura do ano) dura 35 minutos. Ziguezagueando por entre os muitos baixios a que a maré baixa faz aumentar a perigosidade, o batelão chega ao pontão com os ponteiros a baterem nas 8:00 da matina.
À espera do barco, há uma equipa de vários homens e um camião do lixo, para onde os contentores vão sendo despejados mal são depositados em terra pela grua operada por mestre Augusto. Depois de esvaziados, os contentores regressam à Culatra, próximo destino incluído na viagem de regresso.

A jornada que “limpou” três ilhas em pouco mais de quatro horas termina por volta das 10:00 no cais nascente de Olhão. Para trás ficou uma jornada de trabalho mais curta do que no verão, quando só da Armona são retirados diariamente 18 contentores de lixo (contra os 10 retirados hoje, correspondentes a três dias de lixo) e quando os Hangares fazem parte do percurso do “Márcio da Paz”.

A mascote Isa é a primeira a saltar do barco, pequeno-almoço tomado a meias com o mestre da embarcação a quem usurpou o fofo assento de comando durante a viagem. Ufana, de cauda a abanar, orgulhosa da importância que lhe é dada pelos demais tripulantes, enquanto espera pelos três homens que lhe seguem o rasto, saltam sobre o ininterrupto corrimão do barco.

Nas ilhas já há gente a fazer mais lixo. Onde há pessoas há lixo, afinal. Na Armona, as três varredoras já andam, desde as 8:00, enchendo contentores e deixando a ilha num brinco. O mesmo acontece na Culatra, com as quatro mulheres que asseguram a limpeza das ruas. Mesmo no inverno, as ilhas ficam mais bonitas, graças ao trabalho oculto desta gente. Trabalham de dia e de noite, nos bastidores do quotidiano da Ria.

Nota: o JA fez todos os esforços possíveis para obter dados quantitativos mais exatos, designadamente anuais e em termos de peso do lixo, mas infelizmente a empresa municipal Fagar – responsável pela gestão dos resíduos sólidos urbanos no conjunto Culatra/Hangares/Farol – não se dispôs a colaborar connosco. Apesar de termos dado à empresa dois dias para nos fazer chegar a resposta a um conjunto de questões enviadas por e-mail, a pedido da própria, não só não respondeu como não adiantou qualquer justificação para o silêncio. Lamentamos a atitude da Fagar, para mais num contexto em que nos propusemos a dar valor e relevância ao trabalho daquela empresa gerida pelo município de Faro e dos seus abnegados funcionários e colaboradores. Pena a gestão de topo e as relações exteriores não serem da mesma fibra.

João Prudêncio

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