VÍTOR NETO: Esta crise veio pôr a nu a nossa fragilidade

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Há várias décadas que pensa o Turismo e o Algarve e não se negou agora a fazê-lo, em tempos de pandemia. Em entrevista exclusiva ao JA, Vítor Neto, presidente da Associação Empresarial da Região do Algarve (NERA), discorre sobre o momento atual e o seu contexto: as empresas e a economia nacional e do Algarve. Mas o especialista em Turismo fala também de regionalização e coloca o dedo em feridas várias. Por exemplo ao dizer que foi Lisboa quem escolheu muitos dos caminhos da história recente do Algarve. Alguns deles bem discutíveis

JORNAL do ALGARVE (J.A.) – No que diz respeito ao Algarve, esta é mesmo a crise das nossas vidas?
VÍTOR NETO (V.N.)
– Estamos perante um grande desafio e vamos ser postos à prova. Esta é uma crise diferente da I Guerra Mundial, da depressão de 1929, da II Guerra, das crises de 2001 e de 2009. Porque essas eram crises geradas por conflitos de ordem económica, política e militar em que a correlação de forças entre as potências acabava por resolver as coisas. Esta é uma crise diferente, que nasce numa região da China, de forma inesperada, que acaba por ter consequências noutros continentes e atinge uma dimensão global em poucas semanas. Tendo como consequência a paralisia das economias. Os mecanismos para resolver isto também são mais complexos. Não tem nada a ver com a vontade de uma ou duas potências. Não tem vencedores. E ainda por cima num quadro internacional completamente modificado. Não é o quadro de há 10 anos, nem de há 20 anos, em que por exemplo havia cooperação no âmbito da NATO. Hoje temos os EUA com uma política isolacionista, sem ligar aos aliados. E há outra questão: uma Europa fraca, dividida, sem estratégia e que vive o dia-a-dia. E a China a confirmar a sua força nesta crise.


J.A. – A crise está a demonstrar a vulnerabilidade económica do Algarve?
V.N.
– Está. Esta crise veio pôr a nu a nossa fragilidade estrutural. Temos um desequilíbrio estrutural. Felizmente temos um setor económico muito forte e isso não é um ponto fraco da região. O que é negativo é termos o resto limitado. Basta dizer que cerca de 80 por cento do nosso Valor Acrescentado Bruto [VAB] no Algarve está ligado ao alojamento, restauração, comércio, construção, transportes, imobiliária e serviços. A indústria e agricultura representam 10% do VAB. Mas temos o mesmo quadro também no número de empresas, no pessoal, no volume de negócios. Em todos os vetores da estrutura do Algarve há este desequilíbrio. Isso é um ponto fraco. A minha tese é que não temos Turismo a mais, mas sim os outros setores a menos. O próprio Turismo tem de se preparar para os desafios que aí vêm.


J.A. – Falhámos ao fazer incidir a economia na monocultura do Turismo?
V.N.
– O Turismo não resultou de uma estratégia concertada, mas sim das nossas condições naturais e de mercado. As políticas dos Governos é que travaram o nosso desenvolvimento nas áreas da agricultura e pescas e na indústria. Durante anos as políticas da Comunidade Europeia «pagaram» para reduzir a nossa frota pesqueira, para não se ter agricultura. E isto teve uma consequência. O Algarve, pelas suas potencialidades naturais e seu território, pela sua tradição, tinha todas condições para se desenvolver na área do Turismo. Em Portimão, em 2015, comemorou-se o centenário do I Congresso Regional do Algarve, onde o Turismo foi tema importante! Portanto o Turismo no Algarve existe há muitos anos. O desenvolvimento do Turismo não foi por opção. Onde está a medida de Governo que diga “a partir de agora no Algarve é só Turismo!”? Não, o que há é medidas a dizer “a partir de agora não há agricultura, não há pescas, nem indústria!”. Aliás, esta é a região que tem menos fundos comunitários do País. E esses fundos têm objetivos aparentemente avançados, mas pouco realistas.


J.A. – Mas tem havido uma recuperação, por exemplo, da agricultura. Abateram-se as laranjeiras, mas agora está-se a recuperar o laranjal…
V.N.
– É verdade, na agricultura e no mar temos recuperado e bem, mas ainda em valores pequenos em relação àquilo que já foi. O Algarve teve a sorte de, não tendo políticas de apoio à agricultura, indústria e mar, ter tido a capacidade de crescer na área do Turismo, aproveitando um crescimento a nível internacional, em que houve uma duplicação da indústria do Turismo nos últimos 20 anos.


J.A. – Porque é que outras regiões não aproveitaram?
V.N.
– Porque não tinham potencialidades para uma oferta turística para fazerem o mesmo que o Algarve fez. Lisboa e Porto são fenómenos ligados ao Turismo urbano, que nada tem a ver com o Turismo de férias e lazer. São situações completamente diferentes. Lisboa e Porto têm um produto que se tem desenvolvido muito na Europa nos últimos 10 anos, o Turismo urbano de cidades, que já não são só Paris, Londres, Roma ou Berlim, são segundas cidades. E vamos ter de fazer essa reflexão…


J.A. – Não devíamos estar já a fazer essa reflexão sobre o nosso futuro? Parece haver pouco debate público ainda…
V.N.
– Temos de separar as duas coisas. Se me perguntar qual é a prioridade para a economia do Algarve, eu afirmo que, no imediato, é responder à crise, salvar as empresas, utilizar os instrumentos postos à disposição para que as empresas subsistam. Porquê? Porque se se fizer isto estaremos preparados para qualquer um dos cenários que aí vêm. Nós não podemos viver de cenários. Os empresários têm custos todos os dias mesmo quando estão parados. Os empresários têm de criar condições para se manter, aproveitar para melhorar a sua estrutura e formas de trabalho. Se fizerem isso, quando vier a retoma eles estão preparados. Se ela for mais lenta, resistem. Se ela for mais rápida ainda melhor. Agora o que não se pode é dizer que se fica à espera porque não se sabe o que vai acontecer. Isso é suicídio!


J.A. – Então ainda é cedo para refletir…?
V.N.
– Penso que devemos pensar o futuro, mas não misturar as duas coisas. Aí há uma batalha política e ideológica a fazer sobre estas mistificações que se fazem de criticar o Turismo de forma incorreta e superficial, mascarada de grandes teorias. Isso é extremamente perigoso! Ninguém pode negar que no Algarve foram cometidos enormes erros, mas foram cometidos a partir de Lisboa! Foi o Algarve que criou a estratégia comunitária para a agricultura e pescas? Foi o Algarve que inventou o “Allgarve”? Foi o Algarve que inventou os Pin’s, o Pent e o West Coast? Foi o Algarve que pediu as portagens na Via do Infante? Não foi, foram os Governos de Lisboa! Mas este não é o momento de fazer essa discussão, temos de pensar no futuro. E o futuro é um plano de desenvolvimento da economia do Algarve que parta do princípio que o Turismo é um setor forte, o mais importante da economia do Algarve, e continuará a ser. Ao mesmo tempo, começar a construir a diversificação da nossa estrutura económica, que utilize os recursos existentes na região que já se fez no passado e foram muito importantes, terra e mar, embora atualizados. Mas, além de ter um plano estratégico, tem de haver um instrumento político, para poder aplicar esse plano utilizando um orçamento. Senão, não serve para nada. Não é um Governo regional, é uma Regionalização que integre uma administração Regional que tenha autonomia e capacidade e instrumentos para aplicar um orçamento numa perspetiva integrada. Neste momento, temos uma divisão corporativa de territórios, em que cada um – percebe-se – luta pelo seu território ou setor.


J.A. – A pandemia vai acabar por precipitar esta discussão sobre a regionalização?
V.N.
– Sim. É inevitável uma atuação integrada à escala regional. Gostava de saudar a intervenção na crise das entidades do Algarve – saúde, proteção civil, segurança, várias instituições, turismo, municípios – que agiram de uma forma correta para minimizar os efeitos da pandemia. Mas não é suficiente, temos de dar um salto em frente. Temos de ter a coragem de trabalhar em conjunto. Não é só tapar os buracos da EN125 da minha freguesia. Os problemas do Algarve não se resolvem só à escala de um concelho ou de uma freguesia.


J.A. – Que mazelas vão ficar desta situação que estamos a viver, do ponto de vista económico e social?
V.N.
– Vamos ter algumas mazelas porque temos 70 mil empresas no Algarve, das quais 20 mil são sociedades. Algumas dessas empresas vão ter dificuldade em continuar, outras terão de se restruturar e isso é positivo. Por outro lado, vamos ter uma quebra no emprego. Mas vamos tirar daqui as lições mais positivas. E uma delas é: o Algarve não se pode permitir passar por outra crise como esta sem ter condições para responder. Ficámos completamente nus perante uma crise que nos caiu em cima. Se nós tivéssemos uma economia com uma estrutura mais diversificada, teríamos tido condições para resistir melhor, essa é a grande lição. Lição número 2: temos de criar as condições para, se daqui as uns anos houver uma crise com os mesmo efeitos, possamos ter uma estrutura mais equilibrada, que nos permita resistir melhor. O Algarve tem uma balança comercial de bens negativa! Nós hoje importamos produtos que exportávamos. O volume de negócios maior no Algarve é na área do comércio, sobretudo de grandes unidades. E é preciso também ver o que é que essas grandes unidades consomem de produtos do Algarve. Temos de criar condições políticas para que quem faz atividade comercial no Algarve possa utilizar bens da região.

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J.A. – Neste momento o Turismo não pode despontar de geração espontânea. Temos que esperar por uma vacina, que pode aparecer daqui a mais de um ano. O que é que acontece entretanto? Isto não recupera do pé para a mão…
V.N.
– Quem faz prognósticos sobre a realidade daqui a seis meses, um ano, ou quatro anos, está a fazer palpites de futebol! A incerteza é total, porque as condicionantes que hoje existem são imensas. A primeira é a de que ninguém sabe quando termina a pandemia, ou quando é que as autoridades sanitárias consideram que ela está controlada. Se ninguém sabe disso, daí para a frente é tudo incertezas. A primeira questão é regressar à segurança sanitária. A segunda questão é saber se os nossos principais mercados – Reino Unido, Alemanha, Espanha, França, etc. – têm segurança sanitária, senão eles não saem de casa. Mas também não vêm se não houver segurança no destino. Outra questão: se não houver recuperação económica nos mercados que nos abastecem de turistas na Europa – 90% dos nossos turistas são da Europa – não há poder de compra para eles fazerem turismo. Terceira questão, o transporte aéreo. Se não houver, os turistas não saem de casa, não vêm de carro. O transporte aéreo está muito incerto porque há crise nas companhias aéreas. Algumas companhias públicas vão ter investimentos de milhões de euros, que é o caso da Lufthansa e British Ayrways. A questão das low-costs e dos lugares que têm de ficar vagos por razões de segurança sanitária. Há um conjunto de questões que envolvem as companhias aéreas que geram incerteza. A outra questão é a da concorrência entre destinos: vai haver uma concorrência de preços muito dura. E tem de se tentar equilibrar os nossos preços, que também não podem cair demais.

Vítor Neto, presidente da Associação Empresarial da Região do Algarve (NERA)


J.A. – Perante todos esses imponderáveis, qual é a solução, para onde devemos apontar?
V.N.
– A solução é concentrarmo-nos em aproveitar este período para salvar e melhorar as nossas empresas. Mesmo com sacrifícios, com lay-off, pedindo dinheiro emprestado. Uma coisa é certa: o Turismo no Algarve vai recuperar.


J.A. – Numa primeira fase essa recuperação não poderá ser à custa do mercado interno?
V.N.
– O mercado interno é decisivo! Mas nós nem precisamos de forçar o mercado interno, ele está aí!


J.A. – Mas há margem de crescimento para esse mercado, ou estamos saturados? Não se pode baixar preços e atrair mais portugueses ao Algarve?
V.N.
– Os portugueses virão ao Algarve desde que tenham segurança sanitária. Não podemos basear a recuperação apenas no mercado interno, não chega. Mas é fundamental para dar vida às empresas, reanimá-las, mas não é um substituto. Porquê? Porque o mercado interno representa 30% da procura turística e o externo 70%. Mas qualquer pessoa do nosso País tem uma ideia deste Algarve espetacular, de descanso, de lazer, de férias. Há margem para crescer, porque há muitos portugueses que não é por viajar pelo estrangeiro que deixam de vir ao Algarve. Este ano poderão vir mais uma vez.


J.A. – Isso é um pau de dois bicos, se calhar, lá fora vai acontecer o mesmo. Os cidadãos dos habituais mercados emissores poderão deixar de viajar para o estrangeiro…
V.N.
– Sim! Os governos de países como Reino Unido França, Alemanha e Itália estão a fazer muita força pelos seus mercados internos, pelas mesmas razões. E isso pode travar as saídas para o estrangeiro. Isto não é uma esperteza portuguesa, pensar no mercado interno. Todos estão a pensar nisso.


J.A. – Será que temos uma classe empresarial que em matéria de alternativas económicas pense essas coisas e possa dar a volta por cima?
V.N.
– Nós, ao termos alterado a estrutura produtiva da nossa região nos últimos 40 anos, alterámos também a estrutura empresarial e a tipologia dos nossos empresários. Já temos bons empresários no Algarve, o que teríamos era de ajudar pedagogicamente a que se afirme uma classe empresarial que acredite nessas potencialidades e que possa ser ajudada para avançar. Essas décadas destruíram muito do património de cultura empresarial que nós tínhamos há umas décadas atrás. Grande parte de muitos importantes investimentos no universo do turismo são de empresas ou grupos financeiros que não são do Algarve e que têm as suas estratégias mais globais, em que o Algarve é apenas uma das peças. Isso não é um problema pelas pessoas em si. O que é que falta? Falta uma estrutura política regional para poder dialogar com as empresas, que hoje dialogam com um ou dois municípios, onde têm os seus investimentos. Seria importante que partilhassem uma visão regional. E isso nem sempre é fácil.


J.A. – Há ainda possibilidade de a indústria, a agricultura, as pescas e outros setores crescerem no Algarve?
V.N.
– Claro que sim. Temos território a mais e abandonado. E temos outros desafios, como a água, as alterações climáticas. Não é uma questão de opinião, elas já estão aí e vão ter consequências na economia da região que vai ter de se adaptar , com respostas para os desafios que isso gera. A discussão devia ser feita de forma a abrir perspetivas para outras atividades económicas. Numa visão de desenvolvimento sustentável.


J.A. – Sobre a época balnear: com os problemas dos ajuntamentos nas praias, arriscamo-nos a ter turismo, mas termos pouca praia para pôr os turistas. Nesta época balnear e eventualmente na próxima. Tudo depende da vacina.
V.N.
– Mesmo sem vacina, estas medidas que o Governo está a avançar quanto à utilização das zonas balneares, em cooperação com associações empresariais e entidades regionais, Região de Turismo, Municípios, podem encontrar um equilíbrio para a gestão inteligente das nossas praias. Isso significa a introdução de regras que não sejam irracionais ou erradas, que sejam justas e equilibradas e depois a sua aplicação. Por outro lado, a compreensão dos utilizadores do que essas regras são necessárias. Pode-se criar aqui um equilíbrio e devemos trabalhar todos para o criar. É uma etapa decisiva para a reanimação da atividade turística e da economia de região. É um trabalho de todos nós. Vamos ganhar esta batalha.

João Prudêncio

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