As influências do árabe na língua portuguesa (4)

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Numa visão mais étnica, quando nos referimos aos Árabes, costumamos falar “deles”, dos outros, dessa gente que integrava as tribos berberes, que escolheram o recanto da minha, da nossa terra, para fundar a sua Mussiene, assim como para se fixarem em vários pontos, dispersos pela serra ou ao longo da costa marítima, designadamente no litoral sul, onde, durante séculos, atrás de séculos, arrotearam as terras, muitas delas sáfaras, e exerceram as suas artes da pesca, para colher o sustento, falamos dessa gente, dizia, como se nada tivesse a ver connosco, quando talvez não seja bem assim.


Recordo-me, dos tempos da minha infância, nos anos 40, memória que guardo de um modo muito impressivo, quando, em dias de mercado, os chamados “serrenhos” vinham, dos vários lugarejos da serra algarvia, abastecer-se de mercadorias, com as suas mulas, num tempo em que a mobilidade geográfica dessas pessoas era ainda praticamente nula, recordo-me, dizia, que o seu fácies era exactamente o mesmo que podemos ver, nos dias de hoje, num qualquer ‘souk’ marroquino.


Apenas lhes faltava vestir as características ‘djellabas’.

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Cena com alguns dos nossos ascendentes ‘algarvios’ de antanho, jogando xadrez


Afirmo, quase garantidamente, com pouco receio de errar, que os homens e mulheres que eu via eram os descendentes legítimos e directos das populações berberes, que ali se tinham instalado e que, ao longo de treze séculos, desenvolveram, na serra algarvia, ininterruptamente, as suas vidas, no amanho da terra, contraindo ligações de casamento, na mesma aldeia ou na vizinha.  

De facto, quando se afirma que os Árabes foram expulsos da Península, devemos fazê-lo com algum cuidado, na medida em que a expulsão existiu, sim, mas para o exército árabe e cúpulas dirigentes.

Os elementos das tribos berberes, sobretudo das classes mais baixas, que aqui se fixaram, fazendo da agricultura ou da pesca o seu modo de vida, esses, continuaram por cá, porque esta era, de facto, desde há muito, a sua terra e a dos seus antepassados, após a Invasão da Península, em 711.


E aqui permaneceram.

Os meus avós paternos e maternos eram originários da serra.

Por um lado, os séculos ajudaram a que perdêssemos a verdadeira consciência de boa parte da percentagem dos genes berberes que alguns de nós, eventualmente, transportam, porque não somos o que queremos, mas o que as circunstâncias fizeram de nós.

Por outro lado, como poderei eu falar “dessa” gente, dos Berberes de antanho, como me sendo alheia, como sendo “os outros”, quando, muito provavelmente, corre em mim o seu sangue e o meu ADN é o seu ADN?

Velho camponês marroquino de rosto e mãos crestados pela dureza da vida, o espelho ancestral das nossas gentes da serra algarvia


Eis alguns vernáculos herdados do idioma árabe, que eram de utilização corrente, na minha terra, até aos tempos da minha adolescência:

– Fateixa (do ár. fattâxa, “buscadora”, objecto em forma de âncora, embora com os braços mais finos, que é utilizado para reaver qualquer objecto caído num poço, como seja um balde).


– Fatana (do ár. fattân, “invólucro da maçaroca do milho”, palha áspera com que as populações mais pobres enchiam os colchões, onde dormiam, por falta de meios para comprar lã, mais cara, colchões em que cheguei a dormir, ficando com o corpo cheio de brotoeja, isto é, comichão).


– Azougue (do ár. az-zârîq, “mercúrio”, elemento químico, cuja designação científica é “hydrargyrum”, termo formado pelos elementos gregos “hydor”, água + “argyros”, prata ou, traduzido à letra, “água de prata”, visto que o mercúrio tem o aspecto de prata e escorre como água; era utilizado na expressão “parece que estás com azougue”, ou seja, muito irrequieto, sem parar; a frase é tirada da comparação com o mercúrio, cujas gotas parece ‘fugirem’, quando as queremos apanhar).


– Baraço (do ár. marasa, cordel, corda).

– Bofe (do ár. buff, pulmões).

– Almarear (do ár. al-marra, ficar tonto).


– Enxovia (do ár. ax-xawiya, qualquer tugúrio ou enxerga sujos sem o mínimo de higiene).

– Anexim (do ár. na-naxîd, alcunha).


– Almanxar (do ár. al-manxar, estendal feito de esteiras de junco utilizado para secar os figos).

– Comua (do ár. qumâx, imundície, lixo, sendo que é um termo apenas utilizado na expressão “fechar a comua”, no sentido de “fechar a boca”, quando da boca de alguém estão saindo asneiras e se lhe aconselha que “feche a comua”).

– Poia (do ár. buya, pão ou bolo altos, termo que, por extensão, passou a utilizar-se para designar o “forno de poia” meridional, isto é, o que vendia o seu serviço a quem lá fosse cozer o seu pão – chamado pão de cabeça (daí, o ser ‘alto’), o típico pão alentejano –, depois de previamente amassado, fermentado e tendido nas respectivas casas particulares, sendo que o pagamento ao dono do forno se chamava maquia (do ár. makîla, medida, pagamento feito em espécie), que, antigamente, assumia a forma de uma percentagem em pães, mas, mais tarde, passou à forma pecuniária).


– Maracotão (do ár. barra qutun, variedade de pêssego muito aromático, cuja polpa se prende ao caroço, que não provo, há várias dezenas de anos e de que guardo uma saudosa memória gustativa).

– Xarifa (do ár. xarîfa, racha, vulva, vagina. É termo utilizado sem conotação pesada).


Além das inovações que trouxe para a agricultura, cabe igualmente uma referência especial para o que a herança árabe nos deixou, designadamente nas artes da pesca, de que destaco:


– A Arte Xávega (do ár. xabaka, rede).

– A Tarrafa (do ár. tarraha, arremassadeira).

Arte Xávega: quando a rede é pequena, basta a força das mulheres em terra


Na Arte Xávega, um tipo de pesca artesanal ainda praticada em Sesimbra e na Lagoa de Albufeira.

A rede é constituída por um saco de malha fina, onde se aprisiona a peixe.


O barco entra no mar, deixando ficar em terra a ponta de um dos dois cabos da rede, que é lançada a 3 ou 4 kms da costa.

Após esta operação, o barco volta para terra, trazendo preso o cabo do ramo da rede que levou.


Já em terra, os dois cabos – chamados cabos de alagem –, eram puxados por força braçal ou por juntas de bois, trabalho que hoje é feito, habitualmente, por tractor.

Após ser puxada para terra e já sobre a areia, a rede mostrava o peixe que ficou aprisionado dentro do seu largo espaço, peixe que era separado em pequenos lotes para ser leiloado.


Num ambiente muito castiço e pitoresco, o leiloeiro começava, então, a “cantar” os lanços, para cada lote de peixe, principiando por uma valor alto, que ia baixando, sucessivamente, de um modo muito rápido.

Ex. “50, 49, 48, 47, 46 …”


Logo que algum comprador presente considerasse o valor do lote convidativo, apressava-se a gritar: ‘Chui, está o peixe vendido!’, antes que outro qualquer o fizesse.

Era assim que funcionava a lota do peixe, como cheguei a testemunhar, em Portimão, aquando da chegada das traineiras, após a faina da noite, antes de ser espartilhada por regras rígidas e fiscais e condicionada a espaços próprios, que lhe retiraram todo o antigo encanto.


A Tarrafa, como o próprio nome, em árabe, significa – arremassadeira –, é uma rede circular com pesos a toda a sua volta, uniformemente distribuídos, sendo fundamental que, ao ser lançada, se abra o mais possível, antes de entrar na água.

(continua)

José Domingos

Jose Domingos

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