Daniel Vieira – O embaixador de Alte

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Daniel José Ramos Vieira é filho de Alte e tem dedicado toda a sua vida às Artes. A Gravura, a Pintura e a Música são os alicerces da sua alma jovem, presa num corpo de 84 anos. Os ares da serra, os sons da aldeia e a influência do pai, José, despertaram-lhe a sensibilidade artística e o espírito visionário. É na Galleria D’Arte Daniel Vieira, situada no centro da aldeia, que passa grande parte do tempo. Aos 84 anos, o artista contorna os desafios da idade (e do corpo) com o poder da arte, que lhe dá força para fazer um desenho por dia. Fique a conhecer a história de Daniel Vieira – o embaixador de Alte

O quotidiano e a música são as suas maiores inspirações

A porta da rua estava entreaberta. Na frente da casa, que é também a sua galeria, veem-se uma série de objetos aleatórios e que compõem uma harmonia própria ao espaço exterior, com vistas privilegiadas para a paisagem bucólica de Alte. Daniel envergava o seu chapéu algarvio e recebeu-nos com pompa e circunstância para uma conversa leve e animada, tal como o seu espírito.

Com 20 anos rumou à capital para estudar na Escola António Arroio, nos cursos noturnos de Desenhador e Gravador-Litógrafo. A partir daí, apaixonou-se por Lisboa, que ainda hoje considera um dos seus sítios favoritos no mundo (a par de Alte), piscando sempre o olho aos encantos de Alfama, onde cantava nos bares a música tradicional portuguesa. Já na Cooperativa de Gravadores Portugueses, frequentou o Curso de Gravura, que o levaria até à Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, onde se licenciou em Pintura e se especializou em Gravura.

A Galeria, em Alte

O que o faz ser quem é

Por influência de seu pai, José Vieira – pintor, escritor, poeta, músico e antigo presidente da Junta de Freguesia de Alte – Daniel dedicou-se à pintura desde cedo. Disse-nos que o pai lhe deixou “o gosto pela arte e pelo folclore”, que até aos dias de hoje corre nas suas veias.

Para definir Arte, recorre automaticamente a um poema de António Aleixo, uma referência indiscutível no seu trajeto. “Ser artista é ser alguém! Que bonito é ser artista…Ver as coisas mais além do que alcança a nossa vista!”. Se na receção ficámos rendidos (e surpreendidos) pela sua singularidade, este verso aproximou-nos ainda mais do seu raciocínio artístico de Daniel, que fez questão de nos brindar diversas vezes com uma gargalhada que jamais esqueceremos.

Homenagem ao seu pai, José Vieira


A vida quotidiana e a música fazem erguer, em conjunto, o poço onde vai beber inspiração. 


Os seus últimos trabalhos têm sido sobretudo sobre a pandemia e o vírus a ela associado, que nas suas palavras são trabalhos sobre “essa marmelada que anda para aí agora”. A poluição e outros temas que vai vendo na caixinha mágica também o fazem pôr mãos à obra e dar asas à sua imaginação.

Apesar das partidas que a idade lhe prega, continua a fazer um desenho por dia. A sua missão artística (e o que lhe dá gozo fazer) é, e sempre foi, “retratar o quotidiano e homenagear as gentes, nomeadamente os músicos tradicionais de Alte”, algo que concretiza com base em fotografias e memórias enraizadas na aldeia.


A música tradicional e o folclore estruturam, ainda hoje, o seu processo artístico (e a sua personalidade carismática). Em tempos, participou no Grupo Folclórico de Alte e no grupo Almanaque. Criou e participou nos grupos Levante e Erva Doce, onde tocava cavaquinho e bandolim “à sua maneira”. De todas estas experiências guarda “as melhores memórias”, que o levaram a conhecer “um país profundo”, onde mergulhou vezes sem conta nas melodias tradicionais portuguesas. 

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A sede de conhecimento e de “descobrir novos saberes”, levou-o a matricular-se em 2013, com os seus 70 e muitos anos, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, para frequentar o mestrado em Pintura – Novas Tecnologias. Apesar sua “boa relação” com as tecnologias, foi curiosamente uma dança tradicional de Alte, a “marcadinha” e a oportunidade de homenagear “as pessoas da terra que dançavam no grupo folclore e o criam”, que o fizeram voltar ao estudos e a idealizar novas criações. A maior parte dos trabalhos que fez mestrado – que ainda não terminou – adornam as paredes de Alte, e isto graças a Renata Violette, “a amiga” polaca, também artista, que acabou por o convencer a expor a sua arte a céu aberto (com o apoio da freguesia e da Câmara Municipal de Loulé). Daniel Vieira completou ainda uma pós-graduação em Arte Sonora, momento em que ousou fundir as sonoridades folclóricas com a música eletrónica.


Através da utilização de técnicas mistas, continua a desenhar e a pintar, mas é na gravura que encontra a sua paixão. Mesmo que muita gente não “vá à bola” com essa opção, continua a fazer muitas gravuras com recurso a uma fotocopiadora antiga. No computador utiliza programas de edição de imagem como o Photoshop ou o Painter, através dos quais consegue “brincar e descobrir” novos efeitos para os seus desenhos, depois de os ter desenhado à mão, é claro. Daniela Vieira é membro da Sociedade de Gravadores Portugueses.


Este homem é também o rosto por detrás da “Horta das Artes – Centro de Artes e Culturas”, um projeto pedagógico criado em 1994 em torno das artes plásticas, música, teatro, cinema e da literatura popular. Por ter sido professor de Educação Visual, Artes Plásticas e História de Arte, defende que a juventude não está afastada. Existem sim, a seu ver, “professores que não sabem conduzir os jovens para as artes e não os estimulam nesse sentido”, lamenta. 


Para este artista, não há dúvidas de que “a Cultura é maltratada em Portugal” e que falta “o devido apoio aos artistas”. Daniel vai até mais longe ao dizer que “o Governo e a Cultura nunca se deram muito bem, pois toda a arte é uma arma contra a política e quando os artistas se deparam com o não, a criação é muito maior”, acredita. Para sim, “o artista diz sempre que não a tudo e não está satisfeito com nada… O não estimula a arte”, recordando nesse momento o tempo do “lápis azul”, que “nem esse conseguia impedir a vivacidade da arte”.

O artista ganhou vários prémios de Carnaval


 
Daniel, a alma da festa

Por falar em vivacidade, ainda há bem pouco tempo (antes do culpado do costume e de alguns problemas físicos), o artista frequentava bailes de forró. Reconhece que em tempos dava “uns bons pezinhos e dança” e a “veia de folião”, que já o levou inclusive a ganhar vários prémios que toca à originalidade dos trajes carnavalescos que costuma envergar. Sobre o Carnaval e a propósito da efeméride, confidenciou que esta é “uma boa altura, ou a melhor, para dizer que não e para criticar. Isto porque no Carnaval ninguém leva a mal, não é?”, brinca. A personalidade caricata, o estilo vanguardista, a barba longa e os óculos de intelectual tornaram-se numa fonte de inspiração para muitos foliões, que se chegaram a mascarar de Daniel Vieira, tal é a sua unicidade.


Apesar do talento, de um estilo irreplicável, de uma medalha de prata concedida pelo Concelho de Loulé, em 2005, e de uma jornada singular repleta de conquistas nacionais e internacionais, Daniel surpreende-nos ao dizer que considera que ainda “não fez nada de novo”.


Justifica o seu crer com as premissas veiculadas por um professor de História de Arte que lhe disse outrora que “uma obra para ser uma obra verdadeira tem de ter três premissas: não copiar ninguém, ser atual e ser nova”. Talvez tenha ficado demasiado preso a essa definição, mas confessa que desde que se divirta, isso será “sempre o mais importante”. Nunca pensou como gostaria de ser recordado, mas sabe que vai deixar as obras à sua terra. 


A sua última exposição oficial esteve patente em Lisboa, no espaço Duetos da Sé, entre dezembro de 2016 e janeiro de 2017. “Músicos” foi e será sempre uma homenagem aos músicos do seu País. Este altense já realizou diversas exposições individuais e coletivas, em Portugal, França, Espanha, Rússia, Brasil, Marrocos, Angola, Moçambique, imortalizando as suas gentes pelos quatro cantos do mundo.


Daniel Vieira é mais do que um artista. É uma personalidade icónica que também é, ele próprio, uma antítese, pois tanto representa as suas gentes, a cultura algarvia tradicional, o regionalismo, o rural, a humildade, as raízes de um Algarve interior, como é, ao mesmo tempo, um homem cosmopolita, boémio, livre, um símbolo de inovação, ousadia e do pensamento “fora da caixa”. Esta poderá ser a simbiose perfeita para um artista completo.

Joana Pinheiro Rodrigues

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