Olhão e Algarve perdem muito sem o Festival Internacional “Poesia a Sul”

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O premiado poeta, colunista e advogado de profissão, vê a sua atividade literária cada vez mais reconhecida além fronteiras. A sua obra tem sido traduzida e distribuída em diversos países, e são vários os prémios que tem recebido. Fundador do Festival “Poesia a Sul” lamenta, em conversa com o JA, que ao fim de sete anos de grande sucesso, o evento que traz a Olhão escritores, poetas e artistas de mais 30 países, não se realize este ano

JORNAL do ALGARVE – No livro “Reaccionar Es Nuestro Deber”, de crítica literária ao premiado ODE À LIBERDADE, de Fernando Cabrita, o escritor Manuel Moya disse: “Advogado de prestígio, perspicaz colunista em jornais algarvios, homem que soube granjear um espaço próprio, cidadão respeitado, Fernando Cabrita é além disso um poeta sensível, com um peso específico na poesia algarvia e portuguesa contemporâneas”. Fernando, na sua vida a advocacia e a poesia convivem bem ou conflituam entre si?


Fernando Cabrita
– Já no século XVI o humanista e poeta António Ferreira, uma das vozes grandes do classicismo, dizia que “ as musas não fazem mal aos doutores”. Não só não fazem mal, acrescento, como fazem mesmo muito bem. Têm em mim convivido completamente bem o exercício da profissão e o exercício da poesia. Sempre com a ressalva que se ocorrerem eventuais interferências, a primazia é dada, naturalmente, ao exercício profissional. Ainda há cerca de um mês deixei de estar presente no Festival Mundial de Poesia Contemporânea, que se realizou em Chiapas, México e para o qual tinha sido convidado, por coincidirem as datas com a continuação de um julgamento que tenho em curso. Mas não creio que a escrita literária sofra com isso.
J.A. – Nos últimos 15 anos a sua poesia cresceu em reconhecimento nacional, mas também internacional. Algum segredo para isso?
F.C.
– Na verdade, sinto que assim é; mas não existe segredo. No que escrevo, desde sempre, limito-me a transmitir o que o mundo me vai mostrando, e conformo essas impressões com as sensações e emoções que delas me resultam; e ao fazê-lo, procuro que o meio pelo qual as expresso – no caso, a linguagem – possa ser a mais correta, a mais adequada e cuidada, e nunca um mero veículo despiciendo. Como em tudo, na literatura também tem que haver honestidade e sinceridade; e assim tentar que o verso seja genuíno. Penso que o reconhecimento vem exatamente daí, dessa procura de autenticidade naquilo que se faz. E se acaso pudesse referir algum segredo, um há: a leitura. Há que ler. Muito. Por cada verso que escreva, centenas de versos e poemas de outros autores, contemporâneos ou de outras épocas, foram lidos ou escutados.

J.A. – A sua poesia tem hoje uma divulgação significativa noutros países, especialmente em Espanha. Sente que há um interesse crescente na sua escrita literária?
F.C.
– Com efeito. Embora já nos anos finais do século XX aparecessem poemas meus publicados em revistas na Suíça, em Espanha e numa outra em Moçambique, é sensivelmente a partir de 2008 que se incrementa essa minha colaboração com editoras, revistas e cadernos literários de outros países. Em 2011 a Harmattan de Paris publica em França o meu “Douze Poèmes de Saudade”, sensivelmente pela mesma altura recebo o Prémio Internacional Palavra Ibérica com “Ode à Liberdade”, e nos anos seguintes começo a ver poemas meus divulgados, referidos ou comentados em revistas literárias, publicações de crítica poética, blogues e antologias na Espanha, em França, em Marrocos, na Colômbia, na Bélgica, na Turquia, ou na Polónia; e recentemente na Rússia, onde em Julho de 2021 foi editado em Moscovo o meu LIVRO DA CASA, Prémio Nacional de Poesia Mário Viegas 2008, traduzido para russo por Iryna Feschenko.
Edições de livros meus têm tido lugar em diversos países, não só em alguns daqueles que já referi, mas também no Porto Rico; dentro de pouco tempo será publicado em Istambul um novo livro de poemas de minha autoria. E também aguardo duas novas edições brevemente em Espanha, ambas de inéditos.
Devo dizer que este interesse na minha obra literária, que naturalmente me orgulha, corresponde também a um interesse crescente internacional pelos autores portugueses e pela poesia que se escreve em Portugal. Em cada uma das diferentes regiões de Portugal. Interesse que testemunho constantemente nos vários eventos internacionais a que me desloco.

J.A. – Também, desde 2015, o Fernando criou e organiza o Festival Internacional Poesia a Sul, em Olhão, evento que nestes anos foi projetando o nome de Olhão e do Algarve internacionalmente, em muitos países do mundo, nos círculos culturais e literários. Até agora não ouvimos notícias do Poesia a Sul para 2022. Vai ter lugar?
F.C.
– Infelizmente não. Como diz, o Poesia a Sul afirmou-se nestes 7 anos em que consecutivamente se realizou (mesmo durante a pandemia), trazendo a Olhão e ao Algarve, mas também a Lisboa, a Beja, a Sevilha, a Huelva, e outras cidades, escritores, poetas e artistas de mais de 30 países: e o Festival foi sendo divulgado em muitos desses países por jornais, programas de rádio, conferências, revistas, encontros e eventos. Olhão, como referência dessa fraternidade literária e poética, encontrou espaço e divulgação nacionais e internacionais nessa área. Não foi por acaso que nestes 7 anos estabelecemos parcerias com Festivais internacionais em Marrocos, Espanha ou Bélgica; geminámo-nos com organizações como a europeia Fondation Pierre Le Grand; colaborámos com bibliotecas, com o Instituto Cervantes, com órgãos de comunicação; ou passámos a ser presença frequente nos atos internacionais de divulgação e promoção da poesia internacional contemporânea. E em 2021 fomos um dos parceiros do Ministério da Cultura e Desporto do Governo de Espanha, integrando o Programa Mostra España.
É meu dever deixar aqui uma palavra de gratidão e reconhecimento ao Presidente da Câmara Municipal de Olhão, António Pina, que desde 2015 acolheu de braços abertos esta minha ideia e se dispôs a apoiá-la logística e financeiramente. Na verdade, sem esse apoio constante, esta minha criação, Poesia a Sul, não teria conseguido ser executada. Todavia este ano, a comunicação com o Pelouro da Cultura da CMO não funcionou em moldes que permitissem a realização do Festival para 2022. O meu trabalho para o Festival, em cada ano, não é aquele que é visível a cada Outubro, durante 10 ou 12 dias em que o Festival decorre. Começa muito antes. Em Fevereiro ou Março de cada ano começo os contactos com os autores e artistas, faço os convites ainda que informalmente, seleciono os escritores que participarão nos Cadernos Poesia Sul, vou compondo o programa de acordo com as possibilidades e disponibilidades de cada um, desloco-me a eventos internacionais, falo com associações e grupos, convido os três poetas que serão editados em livro na coleção Autores Poesia a Sul, traduzo os textos, etc. E a partir de Julho começávamos em equipa, com o Técnico Municipal Carlos Campaniço (um excelentíssimo escritor e um pilar fundamental para que o Festival se concretize), a dar corpo à organização do evento: selecionar hotéis, restaurantes, escolher e definir salas, contactar parceiros, preparar grafismos, editar os livros, etc.

Este ano foi exatamente o mesmo, da minha parte, e desde Fevereiro. De modo que em início de Agosto enviei para a CMO o programa que fui elaborando, este ano reduzido a 4 dias. Solicitei urgência, pois ia dispor-me a que durante as minhas férias de Agosto pudéssemos avançar com tudo o necessário a deixar preparado o evento. Já tinha as traduções dos livros efetuadas durante os 4 meses anteriores, muitos dos participantes contactados, enfim, tudo pronto a ser posto em marcha. Porém, não obtive qualquer resposta escrita; e só a 16 de Setembro houve um contacto telefónico com vista a dar então início aos procedimentos. Ora, o Festival estava agendado para 14 de Outubro. E o Poesia a Sul tem uma estrutura complexa, e uma dignidade passada e presente que não se coaduna com uma preparação apressada, pouco criteriosa, ou descuidada. Daí que quando recebo esse tardio contacto, já dias antes eu comunicara a todos os poetas, músicos e escritores que havia contactado antes, que a celebração deste ano ficaria sem efeito por absoluta falta de tempo para que pudesse ocorrer em condições.

J.A. – Retira daí alguma conclusão de desinteresse institucional?
F.C.
– Pessoalmente não faço essas considerações; mas já ouvi quem as fizesse porquanto o FICLA (Festival Internacional de Cinema e Literatura do Algarve) que se realizava em Olhão passou a decorrer em Faro; a Feira do Livro de Olhão deixou de realizar-se; os habituais encontros com escritores que tinham lugar na Biblioteca José Mariano Gago também não mais se fizeram. Há, como sabe, dois conceitos de atividade cultural: um que contempla estes eventos que são para um público mais restrito mas têm uma repercussão em cadeia junto de setores nacionais e internacionais de áreas importantes quanto à sua influência cultural e artística; e outro que privilegia a animação e a festa, dirigidas ao público mais vasto.
Como lhe disse, pessoalmente não retiro conclusões. E reitero o meu agradecimento a António Pina pelo apoio constante que permitiu que o Poesia a Sul se tivesse realizado nestes últimos 7 anos.
J.A. – Foi proposto para o Prémio De Artes e Cultura do Governo de Espanha neste ano de 2022. Quais são as perspetivas?
F.C.
– Essa propositura foi uma surpresa. Foi o diplomata europeu Ignacio Vasquez Molini, também escritor e a quem tanto agradeço, quem teve a iniciativa. Só fiquei a saber dela depois de estar já a correr. O fundamento da propositura tem a ver com considerar-me, ele, uma das pessoas que tem contribuído, na atividade cultural, para a aproximação entre a arte e a literatura de Espanha e de Portugal. Seja qual for o desenlace, a simples proposta já me enche de natural orgulho.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Eventos desta dimensão, não podem ser tratados como quem trata da emissão de uma licença de motociclo. A cultura exige e requer outra dignidade. Pena que a Câmara de Olhão tenha deixado de o perceber.

  2. Bad news … lamentável … muito lamentável … uma iniciativa de altíssimo valor cultural, onde não só a comunidade adulta, mas também a comunidade educativa desfrutavam deste extraordinário evento; o Fernando conseguiu dinamizar, ao mais alto nível, toda uma região literariamente adormecida, estendendo a sua dinamização às escolas e estimulando o gosto, a interação e a participação dos alunos na atividade poética e nas práticas educativas … a literacia literária é um dos antídotos mais eficazes contra a manipulação e o totalitarismo … a iliteracia funciona, muitas vezes, como fator de exclusão social … pobre país!!!!!

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