‘Lixeira’ em combustão está a “envenenar as pessoas”

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O incêndio na lixeira de Vale da Venda (Loulé) deflagrou no dia 14 de julho, mas a coluna do fumo tóxico parece não dar tréguas e o cheiro a queimado estende-se desde Faro até Almancil. Perto estão dezenas de habitações, o Hospital das Gambelas, a Universidade e a Praia de Faro. Os moradores queixam-se da falta de soluções para travar um problema “que não é de agora”, a empresa responsável pelo espaço recusa falar e as entidades oficiais passam a ‘batata quente’ entre si perante um caso de saúde pública e emergência ambiental ameaçando, também, o estatuto de uma das cidades europeias com melhor qualidade do ar. O JA foi investigar o que se está a passar em Vale da Venda

Não é difícil encontrar a lixeira de Vale da Venda. Se estiver a conduzir na Estrada Nacional 125, no sentido Faro-Almancil, basta seguir uma densa coluna de fumo branco (por vezes mais escuro) que se vê a quilómetros de distância e o cheiro a plásticos e borracha queimada. Quando nos aproximamos do local, rodeado de pinheiros e vegetação inflamável, os olhos começam a arder, a temperatura aumenta e o ar torna-se irrespirável. A máscara que outrora serviu como escudo ao vírus, serviu-nos como proteção perante a emissão contínua de gases poluentes, dos quais ainda não se conhecem os efeitos na saúde para quem os respira.
No local, encontrámos uma lixeira a céu aberto com um monte de resíduos misturados e agora difíceis de identificar, uma placa com um papel onde se pode ler “Licença de Exploração emitida pela Direção-Geral de Energia e Geologia – Areeiro – Pedreira 5711 Vale da Venda nº 2 Almancil – Loulé”, uma planta de emergência com um plano de evacuação, instalações consumidas pelo incêndios, alguns camiões, portões ‘grafitados’ e dois funcionários que se recusaram a prestar declarações.
A Inertegarve que, curiosamente, utiliza a imagem de um coala na sua página oficial da internet, é a empresa responsável pela administração da lixeira. Entre os serviços disponíveis fazem parte a “gestão de resíduos de construção e demolição”, o “aluguer de contentores e camiões”, “demolições e escavações” e o “transporte e recolha de resíduos perigosos”, tal como descreve na sua página oficial, com sede no Sítio do Arneiro (Faro). Na referida página não é possível encontrar contactos, informações detalhadas sobre a empresa ou indicações sobre o licenciamento do negócio.

Os resíduos continuam em processo de combustão lenta

Apesar de estar alegadamente licenciada para a “gestão de resíduos de construção e demolição”, a verdade é que nas instalações, segundo fonte do JA, se acumulavam “sem qualquer critério” resíduos perigosos como “plásticos, tintas industriais, pneus, madeiras e coberturas de casas” que continuam a arder, em combustão lenta, desde o dia 14 de julho, situação que preocupa os moradores da área circundante. A mesma fonte explica que “apesar de existir um licenciamento, os resíduos não estavam a ser triturados” e que “não se deu o devido encaminhamento aos materiais durante muito tempo”, o que acabou por agravar a situação após o incêndio das Gambelas ter atingido o local.

Moradores assustados com os efeitos na saúde
Foi a cerca de um quilómetro do local que encontramos as habitações mais próximas da lixeira. Conforme relatam os moradores, que optaram por manter-se no anonimato, “O cheiro é especialmente intenso pela manhã. De vez enquanto vemos bombeiros a passar, mas aquilo continua a deitar aquele fumo e há momentos em que não se pode estar na rua”, narram. Dada a rotação do vento, o cheiro e os fumos tóxicos têm sido arrastados até Faro, onde “toda a população já sentiu o cheiro a queimado”, disse por sua vez ao JA Jorge Guiomar, agente cultural de 47 anos e residente na zona do Vale da Amoreira (Faro).
Jorge Guiomar faz parte de um grupo de cidadãos que estão a equacionar fazer queixa ao Tribunal Europeu dada “a regularidade com que acontece e a perigosidade que a situação acarreta para a saúde pública dos moradores” e à “inação das autoridades para minimizar os riscos ambientais”. Conhecedor em matéria ambiental, o agente cultural fala de “uma série de contraordenações que dali têm decorrido e que nunca chegaram a bom porto. Muitas delas já devem ter prescrito”, ironiza. Jorge Guiomar disse também ao JA que será feita uma queixa ao Serviço de Proteção da Natureza da GNR, mas “não vai ficar por aqui”, assegura. Nos próximos, garante que irá pedir “uma análise ao ar que está a fumegar da lixeira. Aí é que se vai perceber a quantidade de elementos cancerígenas que estão a vir para cima de nós. Aquilo está a envenenar as pessoas e a cidade”, denuncia.
Bruno Lage, presidente da União das Freguesias de Faro (Sé e São Pedro) demonstrou também, esta semana, “o descontentamento e a preocupação” em relação ao incêndio no aterro de Vale da Venda, que causa “sérios transtornos à população”. Neste sentido, esta junta de freguesia apela “à mobilização de todos os meios adequados e necessários para a rápida extinção do fogo que está a afetar a saúde e a qualidade de vida de mais de 50 mil farenses”, alerta.

Um fogo que “é quase impossível apagar”
Segundo fonte do JA, especialista em Proteção Civil, “A mistura de materiais como os plásticos, borrachas e outros é um autêntico cocktail tóxico. Com a presença desses resíduos, o fumo vai manter-se e o cheiro também”, alerta. Questionado sobre a forma de apagar o fogo numa lixeira com resíduos tóxicos, a mesma fonte explica que a única forma possível “será por abafamento”, ou seja, “tirar o oxigénio que ali existe e usar terra para extinguir a fumaça”. Contudo, dada a dimensão da lixeira, “seria necessária uma quantidade de terra incalculável e os custos são altíssimos”, esclarece. Ao que o JA apurou, neste tipo de combustões com resíduos tóxicos, não poder ser utilizada água para extinguir o fumo, isto porque a água ficará contaminada e dada a facilidade de escorrência daqueles terrenos planos, facilmente entraria nos lençóis freáticos, contaminando também os solos e as reservas hídricas.
Vítor Vaz Pinto, comandante regional de Emergência e Proteção Civil do Algarve, garante que tem sido feito “um trabalho de monitorização com meios no local”, bem como tomadas “algumas medidas de prevenção para evitar que o fogo passe para a floresta”. O comandante lamenta que até agora, “nada tenha disso feito”, mas adianta que, em plena época de incêndios, “não vai hipotecar meios nem recursos para extinguir algo é quase impossível de ser extinto” e acrescenta “Não vamos estar a assumir uma responsabilidade que não é nossa. As pessoas prevaricam e o Estado é que é obrigado a resolver a questão?”, questiona. Vítor Vaz Pinto recorda ainda a última vez que a lixeira “pegou fogo”, situação que data a setembro 2011, altura em que a combustão espontânea “durou mais de duas semanas”.
Para Jorge Guiomar e outros moradores esta é uma “questão de negligência das autoridade perante uma situação que não é pontual” porque “vão deixar que o fogo se extinga sozinho enquanto envenena as pessoas só porque é dispendioso remover o lixo em combustão e é por isso que ninguém se quer chegar à frente”, deplora. “Isto pode trazer problemas irreversíveis na saúde das pessoas. É isso que está em causa – um caso grave de saúde pública”, assevera.

Licenciamento da lixeira é tema tabu
O fogo de 2011 e “outros incêndios que têm vindo a acontecer na lixeira”, segundo os moradores, não foram um entrave para a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve licenciar a atividade de “gestão de resíduos”, solicitada ao abrigo do regime excecional de regularização das atividades económicas, em abril de 2019.
“Esta é uma situação que se tem arrastado e ninguém quer saber… Estão a empurrar com a barriga uma situação que roça a ilegalidade há alguns anos”, protesta Jorge Guiomar. Para este morador, quase vizinho da lixeira, “Não estão assegurados os mínimos admissíveis para ter ali uma lixeira daquele tipo e as pessoas que lá estão não têm a mínima noção do que estão a fazer”. E prossegue “a lixeira tem de ser fechada, selada e levada dali para fora. Alguém de se chegar à frente”, pede.
Questionado sobre o licenciamento da lixeira, a continuidade da atividade e os estudos sobre os efeitos em termos ambientais no local a perímetros circundantes, o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) alega que “a empresa Inertegarve se encontra localizada fora da área protegida do Parque Natural pelo que se encontra fora das nossas competências no que diz respeito a Conservação da Natureza”.
“No entanto, a empresa confina do lado poente e sul com o Parque Natural da Ria Formosa e do lado oeste e norte com áreas florestais que constituem locais com elevada perigosidade de incêndio”, reconhece Joaquim Castelão Rodrigues, diretor regional da Direção da Conservação da Natureza e Florestas do Algarve em declarações ao JA. “Embora, em sede do PMDFCI , as instalações referidas não tenham definida uma Faixa de Gestão de Combustível de rede secundária no seu perímetro, recomendámos, em 2020, que a empresa se visse obrigada a elaborar e a cumprir um Plano de Defesa Contra Incêndios de forma a aumentar a sua resiliência em situações de incêndio, sejam estas provenientes das áreas florestais envolventes, ou originadas dentro das suas próprias instalações”, alude o responsável.

Uma das entradas da lixeira

A CCDR do Algarve iniciou o procedimento de suspensão da licença de atividade de gestão de resíduos da Inertegarve no dia 15 de julho. “Decidimos iniciar o procedimento de suspensão da licença de atividade porque consideramos que há um risco importante de produção de efeitos negativos para o ambiente, tal como está previsto na legislação”, explicou em comunicado o vice-presidente da CCDR Algarve e responsável pelas questões ambientais, José Pacheco. O processo foi iniciado em articulação com a GNR e a Câmara Municipal de Loulé, que não se mostrou disponível para fazer um ponto de situação em relação ao assunto.
Apesar de estar a laborar de forma normal, à data do incêndio, a empresa Inertegarve estava comprometida a realizar, até novembro próximo, trabalhos de atualização da unidade que iriam, entre outras coisas, “adaptar as instalações aos requisitos legais vigentes em matéria de gestão de resíduos e do regime jurídico da urbanização e edificação e de prevenção e segurança contra incêndios”, segundo informação da CCDR. Para além disto, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional diz que tem vindo “a notificar o operador” para o cumprimento “o encaminhamento regular e periódico dos resíduos, por forma a reduzir a sua quantidade na instalação” ou o melhoramento do “processo de triagem de forma a garantir a correta separação de todas as diferentes frações de resíduos recebidas nas instalações”.
O Jornal do Algarve questionou a CCDR acerca do licenciamento daquela central de resíduos, mas não obteve resposta até ao fecho desta edição. Na sequência deste caso, foi também contactada a Almargem – Associação de Defesa do Património Cultural e Ambiental do Algarve e a Administração da Região Hidrográfica do Algarve – Agência Portuguesa do Ambiente. Ambas as entidades alegaram a “a falta de especialistas para abordar o tema”. De forma a verificar a validade da licença existente no local, o JA tentou também contactar a Direção-Geral de Energia e Geologia, mas sem sucesso.
Recorde-se que, recentemente, Faro foi apontada pela Agência Europeia do Ambiente como a segunda cidade da Europa com melhor qualidade do ar, sendo só ultrapassada por Umeå, na Suécia, distinção essa que pode ficar agora comprometida com este incidente.

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